-
Artigos
Filosofia
David Hume – Livro 1 do Tratado da natureza humana
29/04/2018
O escocês David Hume (1711-1776) empreende em sua primeira e inovadora obra Tratado da natureza humana [tradução de Débora Danowski – 2. ed. rev. e ampliada – São Paulo: Editora UNESP, 2009] a investigação sobre como se dá o conhecimento. Em uma linguagem clara, refutando a tradição filosófica baseada em pressupostos teóricos validados em si mesmos, Hume propõe o exame minucioso da formação do conhecimento e prova, submetendo seus argumentos à observação empírica, que não existe outra fonte do conhecimento senão a experiência. É, portanto, na condição do homem enquanto animal, observado em sua natureza física, como existente no mundo, que Hume constrói seu sistema filosófico pelo método experimental. Começa o Livro 1 afirmando que a origem de todo o conhecimento está nas percepções, ou seja, na experiência da qual se formam as impressões [sensações, emoções] e as ideias [produzidas pela memória a partir das impressões].
Mesmo a imaginação, pela qual a mente pode produzir coisas que não existem, tais coisas só podem ser imaginadas a partir das percepções como ponto de partida daquilo que é existente. Estabelece este como o primeiro princípio da ciência da natureza humana “[…] todas as nossas ideias simples procedem, mediata ou imediatamente, de suas impressões correspondentes” (p.31) e, por meio do exame empírico da formação das ideias, refuta que haja qualquer ideia que seja inata, como já havia sido enunciado por Jonh Locke. Em nenhuma circunstância Hume abre mão deste princípio, reafirmando-o ao longo das quatro partes do Livro 1 em que caracteriza e descreve a maneira como os objetos chegam à mente e, aí, tornam-se conhecimento.
Inspirado pelo trabalho de Isaac Newton na física propõe que a Natureza Humana, até então negligenciada, é a única ciência do homem e estabelece que as ideias se formam na mente como imagens e representações a partir das percepções (pelos sentidos). Tanto as impressões quanto as ideias podem ser simples, quando originárias ou derivadas imediatamente das percepções. Tornam-se complexas pois a mente pensa e imagina por separação e combinação. Afirma: “Todos os tipos de raciocínios consistem apenas em uma comparação e uma descoberta das relações, constantes ou inconstantes, entre dois ou mais objetos” (p.101). Estabeleceu sete qualidades que tornam os objetos passíveis de comparação e que são responsáveis pela produção das ideias de relações:
- Semelhança;
- Identidade;
- Relações de tempo e espaço;
- Proporção de quantidade ou número;
- Graus de qualidade;
- Contrariedade e
- Causalidade.
Apenas quatro dessas relações [semelhança, contrariedade, graus de qualidade e proporções de quantidade ou número] constituem certezas, pois o conhecimento delas decorrente depende unicamente das ideias, é imediato à mente e baseado no princípio da não contradição [relations of ideas]. São o princípio da ciência. As demais relações [identidade, relações de espaço e tempo e causalidade] são produzidas pelo hábito, pelos costumes e sobre eles o conhecimento é tão somente probabilidade.
A Parte 2 de Tratado da natureza humana é dedicada ao problema Das ideias de espaço e tempo, que Hume desenvolve recorrendo sempre ao método empírico. Demonstra como a ideia de espaço é transmitida à mente pelos sentidos da visão (visível) e do tato (tangível) e a ideia de tempo em virtude da sucessão perceptível dos objetos em mudança. Baseia sua análise destes conhecimentos na maneira ou ordem como os Objetos existem e se apresentam à percepção do Sujeito.
O problema da causalidade é abordado na Parte 3 Do conhecimento e da probabilidade. As relações de causa e efeito entre objetos são inferências que a mente faz a partir da percepção e com base em 8 regras estabelecidas por Hume:
- Contiguidade entre causa e efeito no espaço e no tempo;
- Sucessão: prioridade temporal da causa em relação ao efeito;
- Conjunção constante em que experiências passadas percebidas pelos sentidos e armazenadas são recordadas pela memória, daí decorrendo a suposição de uma semelhança de ocorrências;
- Conexão necessária de modo que a mesma causa produz sempre o mesmo efeito;
- Semelhança é quando determinadas causas produzem sempre os mesmos efeitos;
- Contrária à regra anterior: uma irregularidade é inferida da diferença de relações de causa e efeito percebidas como semelhantes;
- Grau – um efeito composto derivado de alguma alteração na causa que produz o efeito. Ex.: muito calor queima;
- Imobilidade – quando um objeto não produz efeito deverá haver mais de uma causa para tal efeito
A atribuição de causalidade é decorrente da experiência do homem com os objetos com base nestes princípios. É um conhecimento probabilístico, que não pode ser provado pela razão, baseado tão somente no hábito. É o que Hume chama de questões de fato [matters of facts] evidências em que acreditamos, ou, dito de outra forma, “[…] maneira como uma ideia vívida é relacionada ou associada com uma impressão presente” (p.125). A inferência depende da união das ideias, é um ato mental e dele se produzem as crenças. Hume busca palavras para falar da crença como “maneira diferente de sentir”, que denomina como “força, vividez, solidez, firmeza ou estabilidade superior” (p.127). No exame das causas da crença Hume volta, como faz sempre, ao método empírico e reafirma sua confiança na experiência para concluir que a crença que se segue a uma impressão presente é derivada exclusivamente dos costumes. Ou seja, porque estamos acostumados a ver efeitos que se seguem de determinadas causas, acreditamos que é certo e sempre assim.
Tal conclusão leva Hume a dedicar a Parte 4 ao Ceticismo e outros sistemas filosóficos, onde expõe a impossibilidade do conhecimento verdadeiro a partir das questões de fato em que todo o conhecimento degenera em probabilidade. Faz uma revisão do que havia anteriormente exposto e enfatiza o papel da imaginação como fundamento de todos os nossos pensamentos e ações, pois faz a transição das causas aos efeitos e dos efeitos às causas. Reafirmando sempre que todas as ideias são derivadas de nossas impressões, aborda o problema da identidade e enfatiza a propensão humana de fortalecer conexões. Quando determinados objetos estão unidos por uma relação qualquer, temos uma forte propensão a acrescentar a eles uma nova relação a fim de completar a união. Pela imaginação, com o auxílio da memória que traz as experiências passadas, suprimos as descontinuidades entre os objetos que existem no mundo dando-lhes uma coerência causal que é, tão somente, uma operação mental. A memória revela a identidade ao mesmo tempo em que contribui para produzi-la ao produzir a relação de semelhança entre as percepções. Essa conclusão leva a uma profunda dúvida cética que, ao extremo, imobilizaria o agir do homem no mundo. Hume alerta, no entanto, que se trata de um ceticismo metódico, ligado ao sistema filosófico que propõe para examinar o conhecimento, que não é percebido na vida comum.
Em sua escrita objetiva e clara, mas também irônica e cheia de sarcasmo elegante, Hume conclui o Livro 1 discorrendo sobre a confusão e solidão na qual encontrava-se dentro de sua filosofia pela qual ficava demonstrado que a conexão entre os objetos está unicamente dentro de cada pessoa, é uma determinação da mente, adquirida pelo costume e, portanto, impossível de ser uma verdade irrefutável. Ultrapassada a melancolia e o sofrimento diante desta evidência, depois de algum divertimento descomprometido e alegre entre amigos, Hume retoma com disposição o espírito cético e se dispõe a examinar outros temas que despertam sua curiosidade, ligados aos princípios morais do bem e do mal, a natureza e o fundamento do governo, encaminhando, assim, a continuidade de sua obra filosófica.
Texto elaborado a partir de tradução de Débora Danowski – 2. ed. rev. e ampliada – São Paulo: Editora UNESP, 2009.