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Cinema
O tigre e o dragão
06/06/2017
Foi no bojo do movimento feminista da década de 1970 que surgiram as primeiras reflexões sobre as representações da mulher no cinema, já, então, dentro da mudança teórica que começava a deslocar a análise cinematográfica da perspectiva estética das obras para a compreensão dos significados culturais. Ou seja, o cinema passou a ser considerado uma prática social, em que o sentido dos filmes emerge do contexto da cultura, como resultado da interação de fatores econômicos, políticos e sociais, relacionando a produção aos modos de recepção.
As primeiras críticas utilizaram aporte teórico sociológico e político e, na sequência, a metodologia estruturalista, a psicanálise e a semiologia. É pioneiro o trabalho da crítica e cineasta inglesa Laura Mulvey que, em meados da década, apontou o predomínio de uma imagem passiva e submissa da mulher nos filmes de Hollywood, construída a partir das demandas do olhar masculino. É um desafio, para quem estuda cinema, pensar o filme na teia cultural, já que o referencial estético está sempre cobrando primazia. A beleza de uma obra será maior, no entanto, quanto mais possibilidades de leitura puder suscitar.
O tigre e o dragão (Crounching tiger, hidden dragon, 2000) encantou as plateias ao atualizar o gênero popular do filme de artes marciais, utilizando a técnica digital em extraordinárias cenas de confronto e de luta que lhe renderam o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2001. Para além da beleza de ver os personagens se lançando no espaço, mais leves do que o ar, num espetáculo impressionante de kung fu e balé acrobático, o filme nos traz uma reflexão sobre o tema do feminino e do masculino na contemporaneidade.
Apesar do aspecto histórico e de algumas marcas que nós, ocidentais, imputamos à cultura oriental, estamos diante de um filme tradicional da estética hollywoodiana que combina ação e aventura com um enredo amoroso, a partir de códigos compartilhados do gênero. O diretor Ang Lee, natural de Taiwan, desenvolveu seus estudos de cinema e sua carreira nos Estados Unidos, onde vive desde 1978. Já em seu longa de estreia, A arte de viver (Pushing hands, 1992), combina elementos de sua cultura de origem às formas narrativas clássicas. Também tem dedicado atenção especial à condição cultural da mulher, tendo realizado belíssimos trabalhos como Razão e sensibilidade (Sense and sensibility, 1995), baseado no romance da escritora inglesa Jane Austen, a partir de roteiro da atriz Emma Thompson, com uma trama situada na Inglaterra do início do século 19. Ang Lee é um realizador versátil, que não abre mão de um olhar crítico sobre os acontecimentos. Antes de O tigre e o dragão, realizou dois filmes sobre momentos diferentes da história dos Estados Unidos. Em Tempestade de gelo (1997), através de um drama familiar, ele examina a perda da inocência e a hipocrisia da sociedade americana do começo dos anos 1970. Já em Cavalgada com o diabo (Ride the devil, 1999) traz uma visão desmistificadora da Guerra Civil americana.
O tigre e o dragão é uma co-produção internacional, tendência dominante na indústria cinematográfica, reunindo recursos econômicos e somando múltiplos aspectos culturais para oferecer filmes diversificados a um mercado sedento de novidades. Falado em mandarim, com uma trama que se passa na Pequim do século 19, é um trabalho de carpintaria cinematográfica em que se alia o cuidado dos filmes de arte com o tratamento dos blockbuster destinados ao mercado em grande escala. Por isso, articula significados que possam ser acolhidos no nível da recepção, também em grande escala. O roteiro foi baseado na tradição do wuxia, um gênero literário muito popular na China desde os tempos de Confúcio, cheio de situações melodramáticas e folhetinescas. Algo, portanto, que encontra correlato na literatura popular ocidental. As histórias wuxias narram as aventuras de guerreiros de espírito livre, que dominam todas as técnicas de artes marciais.
No cinema destinado ao mercado em larga escala, o lugar da mulher tem sido sempre o de objeto passivo da ação, companheira de um herói masculino, elemento ativo que faz avançar a narrativa. A mulher nunca está no centro da ação e, quando isso acontece, como na série O exterminador do futuro, ainda assim não lhe é dada a possibilidade de resolver sozinha os dilemas da narrativa, sendo necessário o auxílio de um apetrecho masculino, no caso, o androide interpretado por Arnold Schwarzenneger. Dentro do aparato cinematográfico, o melodrama é tomado como a forma feminina, enquanto os gêneros de ação são destinados à celebração do masculino. O tigre e o dragão problematiza o lugar da mulher neste tipo de filme e oferece uma reflexão sobre a condição do feminino e do masculino na cultura que nos constitui.
O enredo articula quatro personagens principais, sendo três mulheres e um homem, que desencadeiam e fazem avançar os acontecimentos. Todos são guerreiros: Li Mu Bai, interpretado pelo popular ator de Hong Kong, Chow Yun Fat, é mestre wudan, uma arte especial de luta marcial que existe o máximo de perícia e leveza. É um líder e, como um homem de meia-idade, vive uma crise existencial. Questiona o papel que vem desempenhando, não quer mais lutar contra as forças do mal como agente e testemunha da dor e do sofrimento humanos. Seu desejo de paz e bondade é inconciliável com o modo violento de ser masculino, por isso aposenta sua espada, objeto antigo, esculpido há 400 anos, conhecida como Destino Verde, e ambicionada por vários guerreiros, que dá início à narrativa. Tal decisão, no entanto, não o ajuda a mudar, a ser diferente, pois não consegue assumir suas emoções, colocar-se junto da mulher que ama.
Os impedimentos de Mu Bai se refletem na vida de Shu Lien, extraordinária interpretação da atriz malasiana Michele Yeoh (vista como parceira de James Bonde em 007 – O amanhã nunca morre). Ela é uma guerreira e seu modo de ser mulher incorpora com silenciosa eficiência a força, a ousadia, a precisão e a ação masculinas que recebeu como herança do pai, atributos aos quais alia a sutileza, a bondade e o instinto femininos. O destino de Shu Lien tem sido determinado pelos homens em sua vida. A possibilidade dela realizar-se em outros aspectos do feminino, a maternidade, por exemplo, é impedida pela dificuldade de constituir uma família com o homem que ama, Mu Bai, que está absorvido por um sentimento de impotência.
O tema da impossibilidade da maternidade volta na personagem de Raposa Jade, símbolo do mal na forma de um feminino ressentido. A força da personagem é beneficiada pela interpretação da atriz Cheng Pei-Pei, uma espécie de Fernanda Montenegro do cinema de Hong Kong e Taiwan, respeitada por seu extraordinário talento. Raposa Jade matou o mestre de Li Mu Bai no passado e possui uma violência especialmente dirigida aos homens, por ter sido usada como objeto de prazer sexual, em detrimento de sua capacidade de conhecimento e aprendizagem. Impedida de realizar-se numa técnica de luta restrita aos homens, empreende uma jornada solitária e rancorosa, desenvolvendo uma maternidade psicótica, projetada sobre a jovem princesa Jen, à qual ensina, secretamente, a lutar artes marciais. Vivida pela jovem atriz Zhang Ziyi, esta personagem emerge como uma nova geração, um novo modelo para o feminino. Como a trama se desenrola, as alternativas que se apresentam não oferecem a possibilidade de pensar com otimismo a mudança do lugar da mulher na cultura contemporânea.
Jen é uma aristocrata que cresce sob a égide de normas que se recusa violentamente a obedecer. Possui a beleza heroica e romântica dos inconformistas, pois não aceita casar com alguém imposto pelas necessidades políticas da família, pertence à nobreza local, que lhe condicionariam a ocupar um único lugar, o da mulher submissa. Ela ama um guerreiro peregrino, que está à margem da sociedade instituída, e seu encontro com ele se dá no deserto de Gobi – belas imagens de um amor trágico – que se faz na aridez de areias escaldantes. Numa fantasia juvenil, Jen projeta na vida dos guerreiros wudan seu anseio de liberdade. Ela quer aprender esta técnica sofisticada e rara de luta para tornar-se dona de seu destino. E luta por isso.
Mas, afinal, pelo que lutam os personagens?
O encaminhamento para a crise dos papeis masculino e feminino em O tigre e o dragão nos leva a concordar com E. Ann Kaplan quando aponta, em A mulher e o cinema, a ausência do prazer da mulher na narrativa cinematográfica dominante, que lhe nega a possibilidade de discurso e relega a uma posição marginal. A ação do filme se desenrola tendo como eixo a espada Destino Verde, da qual Li Mu Bai abre mão mobilizado por um confuso sentimento, em meio ao qual não vê sentido em mantê-la – quando já não pode empunhá-la conforme a tradição. Na sequência dos acontecimentos, a garota Jen rouba a espada e luta desesperadamente pela sua posse como um símbolo de liberdade e, portanto, da possibilidade do acesso ao prazer. Símbolo de contradição, Shu Lien procura reconduzir a espada ao seu lugar de origem, manter a tradição, enquanto Raposa Jade vale-se da astúcia, da mentira e da traição para tomar posse deste símbolo de poder. Os acontecimentos nos levam a concluir que tudo se resume a um embate pela apropriação de um masculino patriarcal, signo de violência e desumanização, expressa nesse evidente símbolo fálico.
O destino trágico ao qual estão condenados os personagens de O tigre e o dragão, para os quais não há conciliação final, aponta a impossibilidade de integração do feminino e do masculino numa nova ordem em que cada gênero pudesse contribuir com suas especificidades para a construção de sentidos. O homem já não tem força para ser o agente da ação, mas também não há espaço para a mulher enquanto suas opções forem a submissão ou a “masculinização”.
Observando o contexto atual, embora sejam muitas as conquistas da mulher no mundo, a cultura na qual vivemos ainda lhe nega o direito à liberdade. Se assim fosse, por que tantos corpos femininos despidos na mídia, no carnaval, em todos os lugares, expostos como objeto ao voyeurismo machista em que o contrário, a exposição do corpo masculino, não coloca absolutamente nada em nível de igualdade? Essa realidade perversa, em que a mulher não tem prazer nem satisfação na condição feminina, aparece de maneira perturbadora em O tigre e o dragão. Assim, através de recursos narrativos universais, de amplo acolhimento por parte do público, numa produção destinada ao mercado internacional, esta extraordinária obra de Ang Lee assume o desafio de enfrentar o inevitável tom melancólico de uma constatação que está longe de oferece um final conciliador às plateias do Ocidente e do Oriente. É um filme para divertir, mas, sem dúvida, também faz pensar sobre a condição existencial do ser humano.
Publicado em Vox XXI Encarte Um outro cinema é possível. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, edição nº 15, fevereiro de 2002