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Sétima Arte: cinema no Jornal do Comércio
16/06/2017
Ao reunir textos de André Bazin para o livro O cinema da crueldade, o cineasta François Truffaut pinçou uma ideia com a qual o próprio Bazin se definia: “A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte”. Tomo como referência o genial crítico francês, um dos fundadores da Cahiers du Cinèma, que ao escrever sobre cinema, nos anos 40 e 50, desenvolveu uma análise de filme ainda hoje exemplar, para pensar acerca da crítica cinematográfica. Será o crítico apenas um espectador privilegiado que expressa opiniões em ato e bom tom numa coluna de jornal? E ao fazê-lo, quais são suas motivações?
Investido do poder da mídia, o crítico suscita desconfiança. Na opinião de realizadores – teatrais, literários ou cinematográficos – é considerado um autor frustrado, incapaz de realizar uma obra, se contentaria em criticar a dos outros. Em um país como Brasil, onde o projeto de construção de uma cinematografia nacional é oscilante, a crítica entra em rota de colisão com o público. Os filmes que desaconselha pela má qualidade são os maiores sucessos de bilheteria, enquanto outros, exaltados como obras inovadoras, são evitados diante da perspectiva de serem chatos.
Antes de mais nada, é preciso compreender que toda crítica parte de uma impressão pessoal. Não se sustenta aqui o mito da objetividade, por si só já superado. O estudioso, profissional completo que opta pela observação no lugar da ação, desenvolve qualquer análise a partir de uma emoção básica: “gosto” ou “não gosto”. Somente a crítica estéril, no entanto, limita-se a esta única variável. Evitando os perigos do relativismo, em que tudo vale, cabe ao crítico considerar vários fatores ao analisar uma obra: internos e externos a ela. A pesquisa da evolução histórica do cinema é tão importante para compreender a inserção de um filme no contexto em que é produzido quanto o domínio das técnicas de linguagem para desvendar as intenções do realizador. Mais do que tudo, o crítico deve ser alguém dotado de sensibilidade, disposto a lançar um olhar atencioso sobre a obra que tem à sua frente. É necessário generosidade com o outro e consigo mesmo; tolerância para compreender as próprias motivações, os pessoais “gosto” e “não gosto”. Um crítico honesto irá buscar desvendar suas razões íntimas diante de uma obra.
Muito além do fato de externar uma opinião em público, o crítico é alguém com vários interlocutores que esperam dele algum acréscimo ao finalizar a leitura de um texto. Cumprir esta expectativa é uma responsabilidade, mais ainda, é um risco de dar conta da tarefa em se tratando de substituir um profissional como Hélio Nascimento, que durante 31 anos foi titular deste espaço no Jornal do Comércio, dando-lhe respeito e legitimidade.
Dotado de inestimável olhar generoso, Hélio mergulha profundamente nos filmes, buscando neles motivações que fogem aos próprios cineastas. Procura desvendar as razões do inconsciente na transparência da imagem posta na tela. Ironizado por realizadores, este aspecto da crítica deixa de ser um salto no escuro para tornar-se uma análise importante quando praticada com seriedade. Muitas foram as análises deste gênero feitas por Hélio, que calaram fundo na minha percepção dos filmes. Instigada pelo seu olhar, pude compreender o meu próprio ponto de vista do cinema. A leitura de seus textos me proporcionou momentos de prazer. Na paixão contagiante por tentar entender e explicar, várias vezes fechou-se o circuito de que falava André Bazin.
Publicada no Jornal do Comércio em 29/10/1992. Porto Alegre, RS