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Os percursos da crítica de cinema no Brasil
17/10/2019
Almejar a permanência quando não passa de texto efêmero, preso ao filme que passa, eis a contradição da crítica de cinema. Essa é uma das constatações na leitura de Trajetória da crítica de cinema no Brasil, o mais importante entre os vários livros da Abraccine, organizado por Paulo Henrique Silva com artigos de associados de todo o Brasil. São 37 autores que relatam a história da crítica em 23 estados, em edição da Letramento (2019). Com pesquisas acadêmicas e jornalísticas, o livro tem o inestimável valor de preencher um vazio em nossa memória cultural. Percorrer suas páginas é vibrar no sentimento comum de uma cinefilia apaixonada em todos os lugares e épocas.
Com base no livro foi apresentada na XXIII Socine, na Unisinos Porto Alegre, a comunicação Narrativas da crítica: resgate e história na transformação dos meios, em que abordei a reação da crítica às transformações tecnológicas e culturais ao longo dos anos. Dos relatos emerge seu processo de consolidação como um gênero diferente do noticiário jornalístico ou da crônica. A visão panorâmica permite que se identifique concomitâncias na cultura cinematográfica, com especial destaque para o cineclubismo e a cinefilia e seu papel formador de públicos e críticos. A criação dos cadernos culturais nos jornais, o surgimento das revistas especializadas, o anseio de aprofundamento do olhar sobre os filmes se desenham na tensão das políticas editoriais, nas pautas de engajamento pelo cinema brasileiro e nas contingências de mercado.
Todas as narrativas começam no mesmo ponto do prazer de ver filmes, atração que surge na virada do século 20 nas cidades mais urbanizadas do mundo. A crítica descobre sua forma e função junto com o cinema que aprende uma linguagem e se impõe como espetáculo. No Rio de Janeiro e em São Paulo, mas também em Porto Alegre, acostumada às apresentações de vistas animadas desde o século 19, em Recife, portuária e aberta ao mundo, assim como em Salvador ou Belo Horizonte, fundada em 1897 para ser moderna, dois anos após o lançamento do cinematógrafo pelos irmãos Lumiére. Escritores e intelectuais locais são atraídos pelo cinema e os embates de ideias tornam-se intensos. O livro é uma deliciosa coletânea de histórias com personagens singulares.
Há conexões entre as experiências regionais e os tempos históricos, que se revela na visão de conjunto que a obra oferece. Ao mesmo tempo em que recebia e debatia as novidades vindas de fora, a crítica se colocava em campo nas discussões sobre o cinema brasileiro. Ocorre que a discussão sobre o que é o cinema, seu papel e características é assunto permanente e inesgotável da crítica. Os anos 50 e 60 foram polarizados pelos confrontos entre esteticistas e realistas ou nacionalistas contra universalistas, quando a defesa do cinema brasileiro também passou a ser bandeira dos críticos. Nos dias atuais, os desafios do pensamento crítico implicam compreender o cinema na era digital. E isso envolve também a prática profissional. Jornalistas dominaram a área, mas já não é assim. A internet democratizou o acesso aos filmes e a liberdade de expressão. Os blogs e vlogs dos dias de hoje são novas formas da crítica que também foi radiofônica e televisiva.
Diferente do crítico tradicional, preso à agenda jornalística, os novos profissionais da crítica buscam outros espaços e formas de circulação do conhecimento. O livro publicado pela Abraccine, organizado por Paulo Henrique Silva, combina textos de profissionais que atuam na mídia e acadêmicos vinculados às universidades, produzindo novas intersecções dialógicas no campo dos estudos da crítica de cinema no País. Ao relatar a própria trajetória, a crítica projeta uma imagem de si que é visão panorâmica, gesto de análise e reflexão. Num momento de reconfiguração da imprensa, com a redução das publicações impressas e a ampliação das possibilidades com a internet, torna-se fundamental para a crítica conhecer sua história e preservar sua memória. Essa é a contribuição de Trajetória da crítica de cinema no Brasil.
O primeiro lançamento do livro foi em Porto Alegre, no dia 01 de junho de 2019, durante o Seminário O estado da crítica, em comemoração aos 10 anos da Accirs – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Na foto: Paulo Henrique Silva (organizador), Fatimarlei Lunardelli, Jean-Michel Frodon, Ivonete Pinto, Daniel Feix e Milton do Prado (ao fundo).