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Cinema
História de um casamento
20/12/2019
Existe ternura possível para um casal cuja separação passou pela catástrofe de um processo judicial agressivo? Para o diretor Noah Baumbach, sem dúvida! Defender essa ideia é uma das qualidades de História de um casamento (Marriage story), produzido e disponível por Netflix que concorre ao Globo de Ouro, em 05 de janeiro, em seis categorias, uma delas de roteiro. A história foi escrita por Baumbach, cineasta nova-iorquino de 50 anos reconhecido por uma obra mais ou menos autobiográfica. A lula e a baleia (The squid and the whale), indicado ao Oscar de roteiro original em 2006, traz reminiscências do divórcio de seus pais. Ele nega que seu novo filme tenha sido inspirado pela separação da atriz Jennifer Jason Leigh, em 2010, quando o filho deles tinha sete meses. Mas a comparação é incontornável, já que trata do fim do casamento de um diretor de teatro de Nova Iorque com uma atriz de Los Angeles, cidade natal de Leigh. Um dos pontos de desacordo entre o casal é o lugar em que cada um quer viver. A maneira como Baumbach aborda esses desejos inconciliáveis é a pedra de toque de sua visão do fim de um casamento.
É interessante pensar filmes a partir dos espaços nos quais os personagens estão inseridos para, então, analisar o que lhes acontece e como agem no mundo onde foram inscritos pelo cineasta. Que mundo masculino é o de Charlie (Adam Driver) e que mundo feminino habita Nicole (Scarlett Johansson)? Ela expressa as emoções com facilidade e se queixa de ter aberto mão de seus projetos pessoais; ele reclama de ter faltado sexo lá pelas tantas para justificar uma infidelidade que não teria consequências. Esse é o tipo de discurso comum das diferenças entre homens e mulheres das quais o roteiro se acerca, evitando com habilidade os clichês. O mundo dele é o do trabalho no qual tem suas relações sociais, as amizades e os afetos. No mundo dela há amigas, família e uma advogada porreta que a convence a buscar reparos financeiros para o amor azedado. Ela agride, ele se defende, se dizem barbaridades, se agridem e ofendem, mesmo assim, nenhum é vilão. Esse é o ponto alto do roteiro, ao mostrar seres humanos que se equivocam, erram, exageram, mas não são desonestos.
Casais em processo de separação é dos temas mais recorrentes do cinema. Cenas de um casamento (1973) é um clássico de Ingmar Bergman e na linha das disputas judiciais nada foi tão devastador quanto A Guerra dos Roses (1989), incursão na direção de Danny DeVito em que Kathleen Turner e Michael Douglas destroem, literalmente, a casa que disputam nos tribunais. Sem avançar por nenhum desses excessos dramáticos Baumbach mostra em seu filme a dor e o sofrimento de desfazer algo no qual os personagens, em um momento mais feliz, investiram o melhor de si. Mas há mais, o filme capta um espírito do tempo, aspectos de ser mulher e de ser homem próprios da sensibilidade contemporânea. Não se trata do fim do amor entre o casal, mas do que é possível negociar para permanecer juntos. E, aí, as mulheres já não aceitam a soberania da vontade masculina. E o homem, esse sujeito para o qual a paternidade adquire um valor superior, abre mão do que é mais precioso para estar junto de seu filho.
Mas há um tema que perpassa todo o filme e fica em aberto. A queixa principal de Nicole envolve o reconhecimento de seu trabalho em relação ao marido. Há uma competição que tensiona a relação e não se resolve com a separação. A disputa profissional entre o diretor de teatro de Nova Iorque e a atriz de Los Angeles é um ponto nevrálgico de desacordo e se espelha na disputa entre os advogados. Nora Fanshaw, em desempenho notável de Laura Dern, é a advogada segura de si que redireciona o processo quando entra em cena o melhor dos advogados de divórcios, vivido por Ray Liotta. São dois tubarões dos tribunais que se reconhecem na força e esperteza e botam em campo suas melhores armas pela boa disputa. O jogo fica pesado, não necessariamente levando em consideração os sentimentos dos clientes. Mas eles existem e a vida segue, por isso, depois que passa a raiva a ternura ainda é possível. Ela se expressa no gesto simples de amarrar um cadarço solto, detalhes que fazem a excelência do roteiro.