-
Artigos
Cinema
O cineasta que se tornou adjetivo: Felliniano
18/01/2020
A primeira vez que assisti Amarcord eu era recém-formada em jornalismo, estava em Curitiba representando o Clube de Cinema de Porto Alegre na XVIII Jornada Nacional de Cineclubes. Foi no cine Groff, não sei se ainda existe aquela sala, pequena, uma espécie de templo do cinema de arte na época. Lembro do lugar onde sentei, ao fundo. Assistir ao filme de Fellini foi uma experiência transformadora. Comemorar o centenário de nascimento do cineasta italiano nesta segunda-feira, 20 de janeiro, é uma oportunidade para revisitar obras-primas do cinema cujos sentidos nunca se esgotam.
No livro História do cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno, o crítico e historiador Mark Cousins nos oferece uma ampla e apaixonada narrativa do cinema mundial, mas reserva a alguns poucos diretores o epíteto de inventores particularmente originais. É o caso de Fellini, tão único que da sua obra se criou um adjetivo. É felliniana a estética visualmente extravagante e plena de uma poesia que toca os recônditos mais profundos da alma humana. Na Itália do pós-guerra, em que predominava um cinema militante de esquerda, Federico Fellini iniciou dedicando-se a assuntos atemporais de interesse humano universal.
Existe uma galáxia Fellini onde os personagens sofrem, mas jamais perdem a confiança na vida, por maior que seja o desespero. A mais notável dessas figuras é a humilde prostituta de bom coração de Noites de Cabíria (1957), da primeira fase de sua obra, marcada pela tradição do neorrealismo italiano. O roteiro teve a colaboração de Pier Paolo Pasolini, outro grande nome do cinema italiano, sempre tão próximo dos mais simples e desvalidos. Mas o mundo felliniano, que já se desenhava, tinha fonte própria e se abastecia do ambiente dos artistas populares de Roma, onde Fellini chegou, em 1939. Começou escrevendo no semanário humorístico Marc’Aurelio e logo se destacou com esquetes, textos curtos para o teatro de variedades e o rádio, onde conheceu a atriz Giulietta Masina. Eles se casaram em 1943 e tiveram uma linda parceria artística e afetiva que durou toda a vida. Cinco meses depois da morte dele, em 31 de outubro de 1993, ela foi embora também, em março de 94, como se já não fizesse sentido viver.
Giulietta atuou em seus filmes, é parte do mundo felliniano assim como Marcello Mastroianni, que foi uma espécie de alter ego do diretor. Já no final da carreira, em 1985, os dois queridos atores são reunidos para interpretar Ginger & Fred, dois velhos artistas de variedades chamados a um programa de televisão para, 30 anos depois, refazer um número de dança ao estilo de Fred Astaire e Ginger Rogers. Em tom melancólico, o cineasta critica a televisão e homenageia o ambiente artístico popular onde ele próprio começou a fazer sua grande arte. Os personagens de Fellini nasciam da observação da vida comum, não pelo viés realista e, sim, pela capacidade que tinha de descrever ambientes e situações que conjugava com uma poderosa fabulação. Várias pequenas histórias se desdobram ao longo dos filmes em painéis ao mesmo tempo humanos e históricos.
A Doce Vida, seu filme mais famoso, capta o espírito de uma época que está terminando, aquela do boom econômico da década de 50. Mastroianni é um jornalista, sempre em busca de escândalos para alimentar a frivolidade da vida na Itália urbana que se modernizava. Foi deste filme que surgiu o termo paparazzo, nome do fotógrafo que perseguia as celebridades para registrar momentos privadas. Fellini antecipava nossa ansiedade contemporânea por exposição. Ganhador da Palma de Ouro em Cannes, em 1960, A Doce Vida tem cenas antológicas, a começar pelo banho de Anita Ekberg na Fontana de Trevi, na madrugada silenciosa de Roma. Causou escândalo e foi atacado pela igreja católica. Já na abertura se vê um Cristo de gesso sendo transportado de helicóptero sobre a cidade. Mas o problema mesmo era o intelectual Steiner, um niilista que mata os filhos e se suicida. Atrás do hedonismo de uma vida despreocupada havia um desespero e vazio existenciais que o filme capta tão bem. O roteiro, como sempre, era elaborado por várias mãos. O ambiente noturno da elite da Via Veneto foi trazido por Ennio Flaiano, escritor que Fellini conheceu na época da Marc’Aurelio. Foi um de seus roteiristas mais constantes, junto com Tullio Pinelli e Brunello Rondi, com os quais fez a outra obra-prima de sua filmografia, 8 e ½.
Realizado depois de estrondoso sucesso de A Doce Vida, traz um cineasta em crise criativa, às voltas com a pressão dos produtores, enquanto tenta compreender e dar alguma ordem para o caos de sua vida pessoal, especialmente em relação às mulheres. O personagem Guido é interpretado por Mastroianni e antecipa Snáporaz de Cidade das mulheres (1980), filme atacado por feministas que não entendem a ode do cineasta à substância e poder da mulher. Fellini disse, na época: “É a soma de tudo o que fiz até agora e também uma homenagem ao cinema visto como se fosse uma mulher, uma iniciação sexual, a imagem sonhada, impalpável, coisa placentária, ligeiramente indecente, cheia de obscuridades, coisa líquida e por isso mesmo sem um contorno definido”. É uma remissão à experiência prazerosa do espectador, de entrega ao filme que se passa diante dos olhos. O final de 8 e ½ é uma das cenas mais lindas de toda a história do cinema. É uma afirmação do poder da magia, do cineasta que – igual a um mágico prestidigitador – orquestra uma equipe, aquela que cria a beleza do filme. É essencial na cena, em que o diretor em crise reage ao chamado da arte, a música de Nino Rota.
Quando se conheceram, no pós-guerra, a empatia entre Fellini e Rota foi imediata. O maestro e compositor, nascido em Roma, fez mais de 100 trilhas, trabalhou com Visconti e Coppola, mas será eterno pelos temas musicais dos filmes daquele que foi seu grande amigo. A música de Rota expressa a ambivalência de Fellini, ao mesmo tempo exuberante e melancólico, firme e doce, sempre aberto ao poder do sonho. Tudo isso está reunido, em perfeito equilíbrio, em Amarcord (1973), que se passa numa pequena cidade na época do fascismo e mostra a vida comum das pessoas pelo viés do humor. O filme consolidou Fellini como um cineasta da memória. Em dialeto romanholo, da região de Rimini onde nasceu em 1920, amarcord significa “eu me recordo”.
Para jamais esquecer Federico Fellini iniciam as comemorações de seu nascimento. A Cinemateca Paulo Amorim exibe neste domingo, às 19h, o filme Amarcord, com apoio do Clube de Cinema de Porto Alegre e da Federação Internacional de Cineclubes – FICC, por meio do cineasta e cineclubista gaúcho Luiz Alberto Cassol. Com alegria vou falar sobre esse que é um dos filmes da minha vida, durante 15 anos o tema de Amarcord abriu meu programa Filmes e Trilhas na Rádio da Universidade (UFRGS). E na sexta-feira, dia 24, a Cinemateca Capitólio realiza sessão especial de Satyricon (1969), baseado na obra de Petrônio, com a estética contracultural da virada dos anos 60.
Publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 18 de janeiro de 2020.