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Cinema
O desespero metafísico de Terrence Malick
24/08/2020
Fazem mais de 40 anos que Cinzas no paraíso (Days of heaven, 1978) deu a Terrence Malick o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes e se criou a mítica do cineasta original que só voltaria a filmar 20 anos depois, do recluso que não dá entrevistas e proíbe os estúdios de divulgarem sua imagem. O filme permanece arrebatador e, comparado à sua obra mais recente, Uma vida oculta (A Hidden life, 2019), percebemos a recorrência de alguns temas, especialmente o conflito entre o desejo por uma vida boa e as forças destrutivas da realidade que impedem a realização desse anseio. Este tema, recorrente em toda forma de arte, ganha de Malick uma abordagem metafísica que distingue seus filmes.
As duas histórias se passam no campo e os personagens trabalham a terra: em Cinzas no paraíso, no início do século XX, Bill (Richard Gere) e Abby (Brooke Adams) são um casal que finge ser irmão e irmã, fogem de Chicago e conseguem serviço numa fazendo do Texas acompanhados por Linda (Linda Manz), irmã menor de Bill; Uma vida oculta narra a história real do camponês austríaco Franz Jäggerstätter (August Diehl) que se recusou a lutar pelo Terceiro Reich sendo por isso condenado à morte e executado em 1943. Os dois filmes abrem com documentos de época, sugerindo que os eventos históricos se impõem, subjugam e conformam as vontades humanas. Os créditos de Cinzas são apresentados sobre fotos urbanas do início do século, mostram a pobreza das cidades em expansão nos Estados Unidos e delas se faz a transição para os personagens na periferia miserável de Chicago. Bill trabalha nas fornalhas dos trilhos de ferro, um inferno piorado pela opressão do capataz com o qual discute e que morre por acidente. Uma vida oculta abre com documentários do nazismo em que se vê Hitler e o exército perfilado para a guerra à qual Franz será em breve convocado, arrancado da vida idílica com sua mulher, mãe e filhas, na aldeia austríaca de Radegund onde nasceu.
A modernidade separou a moral da religião e libertou as pessoas para fazerem as próprias escolhas, mas Terrence Malick mostra nos filmes que isso não garantiu a maioridade da qual falava Kant no seu famoso ensaio sobre o esclarecimento (1783). A mudança de eixo da religião para a ciência melhorou a vida mas também produziu uma ruptura com a natureza que o cineasta lamenta na forma de exuberância visual. As imagens de Cinzas no paraíso, filmado em colaboração com o notável fotógrafo espanhol Nestor Almendros, impressionam. Os campos cultivados, os trabalhadores na labuta e o drama que se desenrola foram tomados com gigantesca câmera 70 mm ao amanhecer ou entardecer, captando a beleza melancólica dos horários de transição da luz. O ciclo vigoroso da vida é exemplificado na belíssima cena da semente se transformando em trigo por obra das mãos que cultivam a terra. Mas há algo de podre naquele paraíso em que as pessoas são explorados, o fazendeiro é rico e solitário e o casal aproveita que ele se apaixonou por Abby para dar um golpe. A farsa termina tragicamente, afinal, como diz Linda, narradora que conta e também julga: “meio demônio, meio anjo, nós somos”. Essa ideia cristã do mal que nos habita é central em Uma vida oculta.
Hitler é o anticristo que destrói o paraíso de Franz. O filme é uma oração, a abordagem de Malick é religiosa e o personagem se dá em sacrifício por sua crença: ele se recusa a jurar fidelidade à Hitler, etapa obrigatória na convocação para a guerra. Para Kant o dever de praticar o bem é um imperativo categórico, mas o cineasta que estudou filosofia em Harvard e chegou a traduzir Heidegger para o inglês, resolve o dilema moral pela fé. Franz é um fervoroso católico que frente a aniquilação de sua liberdade pela coerção do Estado consulta o padre da aldeia para que lhe oriente sobre como proceder. É aconselhado pelo advogado que o defende a dizer as palavras exigidas e salvar a vida – não é precisa que acredite -, mas não consegue, tem o que o sistema jurídico chama objeção de consciência, simplesmente discorda fazer algo que julga ser errado. Sua convicção lembra os personagens herzoguianos obstinados, mas não há nada tão distante do cinema corporal de Werner Herzog quanto os filmes estilizados do recluso Terrence Malick.
As filmagens foram feitas na Áustria e em locações na Alemanha e Itália por Jörg Widmer, fotógrafo que havia trabalhado com Malik no épico cosmogônico A Árvore da vida (The Tree of life, em 2011). Dois mundos se opõem, apresentados em grandes tomadas com steadycam e lentes grande-angulares que distorcem as imagens: a paradisíaca vida rural, ainda que o trabalho na terra seja exigente e extenuante, e o inferno da prisão nazista. A narrativa é conduzida pelas trocas de cartas entre Franz e a esposa Fani (Valerie Pachner), uma ode ao amor que mitiga o sofrimento. Os sinos da igreja de Radegund ecoam na aldeia quando Franz é executado, em 9 de agosto de 1943, sinal de morte da liberdade, só possível como experiência íntima.
O que falta ao mundo é espiritualidade? Uma vida oculta é como uma oração e assim como Cristo na cruz se dirige a Deus, Franz pergunta: “Senhor, onde estás? Porque nos criou?” O mistério da imolação subjaz na história desse homem comum cuja desobediência Malick transforma em ato de fé contra o mal num filme que pretende ir ao cerne dos problemas existenciais, mas apenas distrai com a nostalgia de paisagens arrebatadoras. O martírio de Franz lembra os personagens sacrificiais de Tarkovski que também se ocupou de nossa queda espiritual. Mas ao contrário de Malick, saudoso da fé como ordem moral, o cineasta russo oferece ao espírito que sofre o bálsamo da arte.
Uma vida oculta (A hidden life, 2019) |Direção e roteiro: Terrence Malick |2h 54min | Disponível em streaming na Looke Filmes