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Cinema
Kubrick por Kubrick
06/11/2020
Entrevistas com cineastas são fontes importantes de informação para a atividade de crítica. A indústria do cinema tem inclusive cláusulas contratuais com atores e diretores para promoção dos filmes no lançamento, isso é parte do agendamento da mídia e mantem o sistema do jornalismo cultural – nem sempre tão livre ou isento quanto se pretende. Do silêncio de quem se recusa a falar se criam lendas instigantes. Era parte do fascínio de Stanley Kubrick sua notória reclusão. Para um único crítico de cinema se dispôs a dar entrevistas, o grande Michel Ciment, com o qual conversou ao longo de 30 anos. Desse material o documentarista francês Gregory Monro fez o documentário Kubrick by Kubrick (2020), exibido na 44ª Mostra Internacional de São Paulo. O cineasta era conhecido por um perfeccionismo obsessivo. Criado no Bronx, em Nova Iorque onde nasceu, se mudou para a Inglaterra em 1961, passou sua vida no condado de Hertfordshire, afastado da indústria americana e no controle dos processos criativos de alguns dos filmes mais geniais do cinema.
Em 1968 Kubrick leu um artigo que Ciment escreveu na Positif, primeira grande abordagem de sua obra na França, e gostou. A entrevista que então concedeu ao crítico, publicada na revista L’Express, deu início a uma conversa que se manteve ao longo de 30 anos. O documentário, que não tem imagem alguma de Kubrick falando, é didático na revisão dos 13 filmes que deixou ao morrer, em 1999. O mais interessante, porém, é a metáfora da mediação sobre à qual se estrutura o filme. Além da voz de Kubrick, saída de um velho gravador – daqueles que já não se usa, no qual, seguramente Ciment gravou as conversas – os depoimentos e outros materiais são todos de arquivo. Não há entrevistas feitas diretamente, mas trazidas do tempo histórico em que se deram, com as emoções, o calor e o sentido do momento em que aconteceram. O material sonoro é fusionado com imagens e cenas de filmes. Uma maravilha para quem gosta de cinema e tem vivo interesse pelo processo criativo. Existe muito blá blá blá no mundo conectado de hoje, clichês que se repetem vazios e esgotam nossa paciência. É diferente quando estamos diante de um verdadeiro artista, rigoroso, exigente e temos a rara oportunidade de saber o que pensa, seus métodos, como cria, de onde vem o impulso que anima sua obra.
Que Kubrick era um perfeccionista é um lugar comum e o documentário ajunta algumas anedotas, a mais engraçada é do compositor Leonard Rosenman, que ganhou o Oscar pela trilha de Barry Lyndon (1975). À frente da orquestra, na tomada 105, esgotado pelas repetições de uma execução que estava perfeita no segundo take, jogou a batuta no chão e pulou no pescoço de Kubrick. Revelação, mesmo, foi saber que Kubrick não tinha tanto controle do processo quanto eu supunha. Cada artista tem seu jeito de criar, Hitchcock planejava tudo, tinha no set controle absoluto porque previa todos os mínimos detalhes. Kubrick era um jogador, se arriscava. Malcolm McDowell saiu com costelas quebradas das filmagens exaustivas de Laranja mecânica (1971), experiência exigente, mas valiosa. Foi do ator, no instante da filmagem de um dos momentos mais brutais e violentos da narrativa, a ideia brilhante de fazer o personagem cantar Singin’ in the rain e criar uma cena antológica. Não é o controle que faz o artista, mas a potência de defender suas crenças. Para além de ser biográfico, Kubrick por Kubrick ensaia um pensamento sobre o mistério da grande arte.
Kubrick por Kubrick (Kubrick by Kubrick) | Direção e roteiro: Gregory Monro |1h 12min | Exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – out/nov 2020