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Cinema
Nigeriano Eyimofe premiado na 44ª Mostra de São Paulo
09/11/2020
Por mais que se busquem razões, as escolhas de um júri resultam da combinação de acasos. Há quem veja na premiação do filme nigeriano Eyimofe (Esse é o meu desejo) na 44ª Mostra Internacional de São Paulo um prêmio político num momento de acalorado debate dos direitos dos negros. Pode ter sido um dos motivos, afinal, não há propriamente originalidade, um critério estimado – especialmente pela crítica de cinema – ao premiar filmes em festivais, mostras e tais. Estive raras vezes na festejada plataforma das novidades do cinema mundial e esse ano, sem sair de casa, num paradoxo do isolamento, pude ver em primeira mão os filmes como se estivesse em São Paulo. Sem dúvida, 2020 ficará para a história como um ano de mudanças estruturais. Indo ao que interessa: qual o valor artístico de Eyimofe? Mesmo que tenha sido político, o prêmio de melhor ficção internacional deve se justificar nos méritos do filme.
Os realizadores fazem a tarefa que o crítico André Bazin considerava básica do cinema: direcionar a câmera para a vida que flui, colocar o ser humano no centro, mostrar seus conflitos e acomodações. No caso, são dois protagonistas, um homem e uma mulher que nem se conhecem, mas têm em comum o desejo de sair do país. Mofe (Jude Akuwudike) é eletricista numa gráfica em que tudo é precário e enjambrado, é chamado de “engenheiro”, mas não é respeitado quando alerta sobre o colapso do sistema de energia. Rosa (Temiloluwa Ami-Williams) é cabelereira, se vira de noite como bargirl e ocasionalmente troca sexo por dinheiro. Moram no mesmo prédio miserável em Lagos, uma cidade caótica e sem estrutura em que se aglomeram quase 8 milhões de pessoas. Ele quer ir para a Espanha e ela para a Itália na esperança de uma vida melhor. Não há mensagem mais universal.
Eyimofe é o primeiro longa dos irmãos gêmeos Arie e Chuko Esiri depois de várias experimentações em curta-metragem. Chuko escreveu o roteiro, Arie gosta mais de compor a cena, dispor os elementos visuais. A Nigéria tem uma inusitada indústria audiovisual, a chamada Nollywood, surgida nos anos 90 com filmes em VHS que hoje alimentam uma produção que chega a 1,2 mil títulos por ano – são 50 novos filmes toda a semana – de gêneros populares distribuídos em cds e dvds. Os irmãos nasceram em 1985 e ambos fizeram cinema em Nova York: Arie frequentou a Universidade de Columbia, enquanto Chuko estudou na NYU. Visitaram diversas vezes o Brasil, falam português e Arie deu uma pista de como foram conjugados os valores artísticos do premiado filme, também indicado no Festival de Berlim deste ano.
Arie decidiu-se pelo cinema quando o irmão lhe mostrou Ladrões de bicicletas (1948), tocado pelo drama moral do pai compelido a roubar e humilhado diante do filho pequeno. Ettore Scola, que seguiu na vigorosa escola realista do cinema italiano, também decidiu o que iria fazer na vida ao ver Vittorio De Sica filmando na Roma do pós-guerra o sofrimento humano. O cinema é tudo – indústria, arte, invenção, tradição – inclusive política, mas filmes com discursos ideológicos ou críticas sociais não se sustentam se não houver méritos intrínsecos. As qualidades de Eyimofe (Esse é o meu desejo) têm relação com personagens e situações bem construídas, ainda que o roteiro deixe a desejar ao dividir o filme em duas partes. Isso mesmo, primeiro a história de um, depois de outro. Mas isso não afeta o poder da narrativa, da força de um olhar que se volta para o mundo e observa o ser humano em suas circunstâncias. Mofe e Rosa fazem suas escolhas, acomodam seus desejos irrealizados e seguem vivendo neste filme comovente que reafirma o poder do neorrealismo como fonte ética e matriz estética das cinematografias pobres do mundo. Os irmãos Esiri começaram muito bem!
Eyimofe (Esse é o meu desejo) (Eyimofe, 2020)| Direção: Arie Esiri, Chuko Esiri, Roteiro: Chuko Esiri. |1h56min | Prêmio do Júri Melhor Ficção na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – out/nov 2020.