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Cinema
Em Porto Alegre
Festival Cinema Negro em Ação
26/11/2020
De Cabral a George Floyd, que abriu o 1º Festival Cinema Negro em Ação no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, poderia mudar seu título para De Cabral a João Alberto Silveira Freitas e isso apenas confirmaria a urgência da revisão histórica a que se propõe. O assassinato, na véspera, de um homem num supermercado de Porto Alegre – por causa da cor de sua pele – solapa qualquer ilusão bem-intencionada de progresso e civilidade que acalentemos. Com o subtítulo Onde arde o fogo sagrado da liberdade, o documentário foi realizado por Paulinho Sacramento no isolamento do covid-19 a partir de conteúdos disponíveis na internet. O artista digital fez um filme para o qual não captou qualquer imagem, usou o arquivo vivo e obscenamente abundante da internet. (O humanismo ético de André Bazin interditava na metade do século XX as imagens do sexo e da morte; nosso despudor no século XXI é a indiferença diante de imagens de corpos sendo aniquilados). Paulinho coteja Brasil e Estados Unidos, põem em perspectiva intelectuais, líderes políticos, artistas – Angela Davis, Djamila Ribeiro, Martin Luter King, Ailton Krenak, Toni Morrison, Luci Brandão, Grace Passô e etc, trazendo muitas e múltiplas vozes ao debate sobre racismo. Coloca o cinema a serviço de uma causa! O próprio Festival, enquanto ação afirmativa do poder público, é um chamado ao exame por uma nova consciência histórica, única maneira para construir novos modelos sociais e políticos.
O documentário predomina entre os seis títulos de longa e média-metragem de um programa de mais de 20 horas de conteúdos em curta, videoarte e clips transmitidos pela TVE-RS. Conquix já pelo título celebra uma vitória: aquela dos moradores do bairro Jardim da Conquista, na zona leste de São Paulo, que há 30 anos desbravaram um território inóspito e, com as próprias mãos, construíram suas casas e a comunidade. Realização do Coletivo Criô o filme tem valor como memória oral, sem que se acrescente qualquer inventividade ao tratamento dos relatos dos voluntariosos moradores. Bem mais articulado é Raízes, em que o jovem Kelton Campos Fausto examina, a partir da busca por seus ascendentes, a ruptura das populações negras com suas linhagens originais. A dimensão trágica dessa perda é exposta em números: meio milhão de pessoas negras capturadas na África e trazidas para a América Latina perderam os laços com suas famílias e comunidades de origem. Junto com a violência da escravidão a indiferença e o desrespeito humano da falta de registros que impedem hoje aos afro-descendentes buscarem seus antepassados. Estruturado na forma que Jean-Claude Bernardet chamou de “documentário de busca”, Raízes expressa não um problema pessoal de identidade, mas um desafio geracional que implica também na revisão da narrativa histórica sobre a escravidão.
O filme gaúcho da seleção de longas, Argus Montenegro, é um dos melhores documentários de nossa cinematografia e é excelente que tenha sido selecionado e se projete no escopo do Festival, pois duvido que tenha sido visto (inclusive por algumas das melhores cabeças da cinematografia local). O primoroso trabalho de Pedro Isaías Lucas foi lançado em 2012, no Cine Santander, e revela a figura fascinante desse baterista genial que foi Argus Montenegro. O filme subtitulado E a instabilidade do tempo forte é o que podemos chamar de “documentário de acompanhamento”, já que Isaías gravou depoimentos e rotinas de seu personagem entre 14 de janeiro de 2004 até sua morte, em 2008. A técnica não é observacional, há uma interação do cineasta com a família a ponto de se permitir revelar episódio bastante privado. Só tenho uma sugestão sobre esse filme: assista! A paixão de Argus pela música, sua intensidade e contradições enchem a tela de som, fúria, beleza e nos contagiam.
Que os olhos ruins não te enxerguem é o melhor título entre a seleção dos longas do Festival, ganhou prêmios no FestRio e no Mix Brasil, em 2019. Em torno de uma dezena de pessoas negras que experimentam o duplo preconceito da cor da pele e de suas identidades sexuais, o filme organiza um discurso sobre a transformação de si pela arte. Porém, ao falarem de suas vidas, as personagens que são da periferia de São Paulo – mulheres lésbicas, gays e transexuais – produzem a consciência social sem a qual nada se transforma. “Os humanos pensam em forma de narrativas e não de fatos, números e equações, e, quanto mais simples a narrativa, melhor”. Assim o historiador Yuval Noah Harari inicia a primeira de suas 21 lições para o século 21, aquela dedicada ao colapso das explicações totalizantes e à necessidade de inventarmos novos valores para novas formas de viver.
É de se observar que a seleção de longas traz apenas um filme de ficção: Entreturnos, no qual o tema não é político, mas o universal desejo humano de ser feliz no amor. A diferença de horários de trabalho do cobrador de ônibus Beto (Paulo Roque) e da atendente de supermercado Gilda (Janaína Kremer) está esfriando seu casamento. As paradas no bar de Leia (Lorena Lima) a caminho de casa vão ficando cada vez mais estimulantes para Beto, especialmente quando o baiano Valcir (Luis Miranda) anima com sua ginga o boteco da velha amiga. A triangulação amorosa que se forma termina de maneira bastante inventiva neste filme capixaba dirigido por Edson Ferreira, que escreveu o roteiro com André Félix.
Quando a realidade muda, os conceitos e as palavras se transformam, mas, por outro lado, para mudar a realidade também é preciso produzir novos discursos. Da dialética entre o real, o simbólico e o imaginário vai se tecendo a vida humana. Nunca esqueci a máxima de Cosme Alves Netto – o grande preservacionista do cinema brasileiro que por décadas esteve à frente da Cinemateca do MAM-RJ -, ao falar sobre cinema e política, ele que começou no cineclubismo e esteve no centro dos grandes embates da política cultural no Brasil: “Pra mim, Cantando na chuva (Singin’in the Rain, 1952) é um filme altamente político. Eu vejo Cantando na chuva num cineclube e me sinto bem comigo mesmo pra ir fazer política na rua. Eu acho que a gente faz política na rua não dentro do cinema. Ninguém fez revolução passando filme. As revoluções foram feitas na rua”. Era 1984, estávamos com P. F. Gastal na Jornada de Cineclubes, em Curitiba, e ele falava dos heroicos anos de militância cinematográfica da década de 60.
O tempo das revoluções passou e, se não transformou o mundo num lugar melhor, deixou a certeza de que as mudanças, por bem ou por mal, acabam acontecendo. Porém, para que a sociedade melhore a tarefa deve envolver a maior quantidade possível de pessoas. Filmes devem emocionar, sejam documentários organizados em torno de um argumento, ou ficções tramadas para nos entreter, alegrar, divertir ou consolar, não importa. A política se dá nas instâncias próprias em que se efetiva, por isso, que esta seja apenas a primeira edição do Festival Cinema Negro em Ação. Ato de governo, realizado através da Secretaria de Cultura, produzido no âmbito do Instituto Estadual de Cinema e da Casa de Cultura Mário Quintana, com curadoria de Camila de Moraes, diretora negra do Rio Grande do Sul, o festival revela não apenas os filmes, mas a cara de quem faz cinema negro no Brasil.
Filmes citados: Argus Montenegro, a instabilidade do tempo forte (RS, 2012). Direção: Pedro Isaías Lucas. | Conquix (SP, 2020). Direção: Monike Raphaela e Erick Novais. | De Cabral a George Floyd, onde arde o fogo sagrado da liberdade (RJ, 2020). Direção: Paulinho Sacramento. | Entreturnos (ES, 2014). Direção: Edson Ferreira. | Que os olhos ruins não te enxerguem (SP, 2019). Direção: Roberto Maty e Thabata Vecchio. | Raízes (SP, 2020). Direção: Simone Nascimento e Wellington Amorim.
Citações de Yuval Noah Harari [21 lições para o século 21, SP, Cia das Letras, 2018] e Cosme Alves Netto [Quando éramos jovens: história do Clube de Cinema de Porto Alegre, POA, Ed. da UFRGS e UE/Secretaria Municipal de Cultura, 2020].