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Cinema
Um tropicalista de Bagé
06/01/2019
Não é mentira dizer que, aos 32 anos, Zeca Brito já tem 20 de carreira. A prova do início de sua trajetória de cineasta aos 12 anos é a pedra de toque de Glauco do Brasil, o melhor e mais importante título de uma profícua filmografia de dez filmes, entre curtas e longas de ficção e documentários, incluindo o inédito Legalidade. Uma combinação de ousadia e capacidade de articular-se com os pares tornam Zeca um nome importante entre a geração de cineastas egressos dos cursos universitários de cinema no Rio Grande do Sul. No caso desse bajeense, nascido em 1986 e formado no curso de Realização Audiovisual da Unisinos, o marco estético e temático inscreve-se numa história cultural que se inicia nos anos 40, em sua cidade natal.
Bagé, com seu casario antigo, reminiscência de um tempo de riqueza econômica vivida no auge da atividade pecuária no século 19, viu surgir nos anos 1940 uma notável geração de artistas identificados como Grupo de Bagé. Foram gravadores, desenhistas e pintores que, pelo talento e qualidade das obras, se projetaram no mundo. O trabalho mais recente de Zeca, o documentário Grupo de Bagé, produzido para o Canal Curta, cumpre a função de reafirmar o valor desses artistas. Nascido numa família ligada às artes – o pai é o produtor cultural e ator Sapiran Brito – Zeca primeiro se interessou pela gravura. Como documentarista, com formação também em artes visuais, transitou por ambiente familiar ao entrevistar dezenas de especialistas, artistas e amigos cujos depoimentos reafirmam e divulgam a importância de Glauco Rodrigues (1929-2004), Glênio Bianchetti (1928-2014), Carlos Scliar (1920-2001) e Danúbio Gonçalves (1925), expoentes do que é conhecido como Grupo de Bagé, nome derivado de uma exposição realizada em Porto Alegre, em 1948.
De forma didática, na tradição do documentário expositivo, o filme mostra o trabalho de cada um dos quatro artistas marcados por uma época de utopias em que a arte se engajou na realidade pelo viés comunista. Mas nenhum deles, mesmo os mais políticos como Scliar ou Danúbio, praticaram o realismo socialista. São relevantes pela originalidade e por estarem em sintonia com as questões estéticas e sociais importantes de seu tempo. O percurso do Grupo de Bagé, que se projetou inicialmente pela gravura, se inscreve no conflito entre a arte abstrata e o figurativismo na virada dos anos 50 para a década de 1960. “A arte brasileira é escancarada a arte feita no eixo Rio-São Paulo, porque tinham hegemonia econômica”, afirma Fernando Cocchiarale, curador do MAM-RJ, ao falar do aspecto político do sistema das artes. O roteiro escrito por Zeca em parceria com o ator e diretor de teatro bajeense Gladimir Aguzzi discute a inserção dos gaúchos na historiografia das artes brasileiras.
O filme tem esparsos dados biográficos, concentra-se no legado dos artistas ao país e como são reconhecidos em centros internacionais de arte – México, França e Itália. Não há imagens dos já falecidos, eles permanecem pelas obras, nas memórias dos entrevistados e suas fisionomias são entrevistas em algum autorretrato. Se ouvem apenas as vozes deles em som over. Em cena, somente Danúbio Gonçalves, nascido em 1925, olhado de longe pela câmera num enquadramento pleno de melancolia poética e reconhecida admiração. O trineto de Bento Gonçalves, herdeiro de estancieiros, que morou 15 anos no Rio de Janeiro e frequentou o atelier de Cândido Portinari, escolheu morar em Porto Alegre. Trabalhando e se reinventando continuamente, escolheu dar aulas. Como professor foi uma presença fundamental para milhares de jovens que passaram pelo Atelier Livre da Prefeitura em busca da arte como meio de expressão da existência.
O primeiro longa-metragem escrito e dirigido por Zeca Brito, O Guri, de 2011, apesar das fragilidades narrativas, esboça os temas que interessam ao cineasta. O cenário físico e dramático é o Pampa a reivindicar um lugar no imaginário brasileiro. Uma epígrafe de Simões Lopes Neto – “o sonho não tem lindeiras nem tapumes” – abre a história de corte fantástico sobre um menino numa fazenda isolada, criado entre mulheres abandonadas aos afazeres da casa pelos homens que partiram para a guerra. A solidão, a inveja e os ciúmes inflamam a imaginação das personagens resultando em histeria e morte. O filme tem ousadia estética e dramática, mas falta, no conjunto, domínio dos elementos cinematográficos. A fala “acastelhanada” das mulheres inscreve o filme na linhagem de Anahy de las Missiones, de Sérgio Silva. Marco da retomada, é um dos grandes títulos do cinema brasileiro, recebido com estranhamento ao encerrar o Festival de Cinema de Gramado em 1997. Os espectadores, desacostumados com o linguajar fronteiriço que se produz no Rio Grande do Sul com os vizinhos argentinos e uruguaios, não entendiam a história de Anahy, exuberante figuração da mãe coragem brechtiana entre os escombros da Guerra dos Farrapos que assolou o Rio Grande na primeira metade do século 19.
A Amizade
O Guri foi feito de modo cooperativo por egressos universitários que vêm reconfigurando a produção audiovisual no Rio Grande do Sul. Esse mesmo caráter colaborativo resultou na comédia Em 97 Era Assim, sobre quatro adolescentes e suas descobertas sexuais, num diálogo com a tradição dos filmes sobre amizade que inclui, no Rio Grande do Sul, Deu Pra Ti Anos 70 (1981) e Verdes Anos (1984). Mas, ao contrário dos expoentes citados, no Brasil democrático dos anos 90 a política é ausente do cotidiano de quatro garotos empenhados em perder a virgindade. No dia-a-dia da escola, entre festinhas embaladas por É o Tchan, na cobrança dos pais e dos professores por mais dedicação aos estudos, o filme vai compondo a rotina de adolescentes de uma pequena burguesia urbana no final dos anos 1990.
Uma das qualidades de Em 97 é o ótimo elenco figurando personagens típicos: o sabidão malandro (Julio Estevan), o inteligente razoável (João Pedro Corrêa Alves), o amigo bobão (Pedro Diana Moraes) e o certinho tímido (Fredericco Restori), narrador das memórias de um tempo de descobertas. O significado das lembranças, a configurar uma espécie de amarcord geracional, está no elemento comum da juventude ser uma época na qual se estabelecem as amizades mais duradouras. Os hormônios fazendo o desejo sair pelos poros, a ansiedade de satisfazer impulsos que atropelam os bons costumes, a vergonha, a timidez diante das meninas, tudo se mistura na jornada dos quatro porto-alegrenses. Um aspecto da fidelidade na reconstituição da época são os diálogos dos personagens que usam o “tu”, comum ao modo de falar no Rio Grande do Sul, banido de certos filmes sob o argumento de inserção no mercado cinematográfico nacional. A ótima direção dos atores naturaliza na tela o jeito típico porto-alegrense de falar, afirmando um lugar de representação no multifacetado conceito de identidade brasileira, genericamente reconhecida no espaço imaginário do eixo Rio de Janeiro-Nordeste.
Em 97 Era Assim acerta no humor. Situações cômicas jogam com duplos sentidos e com o olhar retrospectivo sobre uma época em que a internet era discada, Titanic fazia meninas chorarem (meninos também!) e sacolé era picolé da moda. A participação de Jean-Claude Bernardet, teórico e crítico dos mais importantes, que se faz ator nos filmes de realizadores dos quais é amigo e entusiasta – caso de Zeca Brito -, é um desses momentos engraçados. Ele é o diretor Claude que, em meio a reprimenda aos alunos indisciplinados, desconcerta garotos e espectadores ao lamentar sua própria má-sorte com as mulheres. Mérito da consistente escritura de Leo Garcia, sócio da produtora Coelho Voador, diretor-geral e idealizador (junto com Mariana Müller) do Frapa, Festival de Roteiro Audiovisual realizado anualmente em Porto Alegre, desde 2013. Também foi escrito por Leo o roteiro do documentário A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro, codirigido com Zeca e lançado em 2018. Novamente um tema concernente ao Rio Grande do Sul: a história do jornalista nascido em Passo Fundo, que começou a trabalhar na adolescência no jornal do pai e fez história no Rio de Janeiro como um dos grandes personagens da imprensa brasileira sob a ditadura.
Fundador d’O Pasquim, a vida intensa e apaixonada de Castro é reconstituída através de dezenas de depoimentos de colegas, amigos, namoradas, afetos e desafetos numa perfeita elegia à figura que se fez lendária ainda em vida. Tarso faleceu em 1991, aos 49 anos, por cirrose hepática. O filme adere à lenda, inclusive na forma fílmica. Além de frasista virtuoso, apaixonado por jornalismo, mulherengo e incansável bebedor de uísque, Tarso era um sedutor de fala afiada e envolvente. Adorava conversar ao telefone, hábito que o filme reencena fazendo os entrevistados darem seus depoimentos como se estivessem falando ao telefone. O resultado é artificial e, por sorte, não compromete o mais importante que é situar o papel de Tarso na história da imprensa no Brasil.
Tarso fundou O Pasquim em 1969, semanário marco do jornalismo independente que reuniu, entre outros, Paulo Francis, Sérgio Cabral, Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar e o também gaúcho Luiz Carlos Maciel. Em outro grande momento na Folha de S. Paulo, nos anos 1970, criou o suplemento Folhetim e chegou a ser um dos colunistas mais lidos do país. Acontece que a personalidade impulsiva e anárquica de Tarso transformou aliados em inimigos. Ziraldo, que se tornou desafeto, nem quis participar do filme. Devido a uma briga com Millôr Fernandes, o nome de Tarso foi apagado da história d’O Pasquim. Restituir essa memória é um dos propósitos do filme que se vale de farto material de arquivo e depoimentos de personagens como Jaguar e Luiz Carlos Maciel que corroboram a injustiça com o passo-fundense.
Tropicalista do Pampa
Glauco do Brasil é uma explosão de sons e cores que toma o espectador pelos sentidos. Os movimentos da câmera, conduzida pela incontroversa direção de fotografia de Bruno Polidoro, sobre a superfície dos desenhos, gravuras e pinturas de Glauco Rodrigues, produzem uma sensação tátil. As imagens capturadas vão do detalhe ao geral, do específico ao amplo, de Bagé ao Rio de Janeiro, de Roma a Paris, alternando-se ao ritmo de estupenda trilha sonora. Em sons e imagens o filme advoga o tropicalismo do artista nascido no Pampa gaúcho, região meridional da América do Sul, encontro do Brasil com Argentina e Uruguai. É uma ideia que Zeca consolida por meio da palavra, nas perguntas dirigidas a Ferreira Gullar, João Bosco, Frederico Morais, Affonso Romano de Sant’Anna, Ricardo Cravo Albin e Gilberto Chateaubriand. Não faltam testemunhos para exaltar o talento, a beleza, a vitalidade e sofisticação da obra rodrigueana – e analisar sua inscrição na história do Tropicalismo brasileiro, na qual o filme cobra a ausência do bajeense.
A trajetória do expoente do Grupo de Bagé, iniciada como autodidata nos anos 40, é articulada em torno da noção de carnavalização crítica. Glauco já era conhecido dos Clubes de Gravura de Bagé e de Porto Alegre quando foi morar no Rio de Janeiro, em 1958. “Era um artista gráfico”, sintetiza Luis Fernando Veríssimo, ao comentar as capas criadas por Glauco na Revista Senhor, numa fase em que tendia ao abstrato. Depois da Bienal de Veneza, em 1964, de onde saiu impactado e em crise diante da arte pop norte-americana, retorna à figuração e empreende uma leitura crítica do Brasil sob o regime militar – é um momento de virada criativa que o filme expressa numa sucessão de imagens vibrantes ao ritmo de O Mestre Sala dos Mares. Índios, negros, carnaval, futebol e a natureza tropical são assuntos que circunscrevem seu universo temático.
Glauco foi notável retratista – um meio de subsistência e uma forma artística que nunca abandonou, experimentada nos limites entre a figuração e a abstração. São Sebastião, padroeiro de Bagé e do Rio de Janeiro, foi retratado mais de uma centena de vezes em desenhos, aquarelas e pinturas. O santo martirizado com flechas por afrontar o Império Romano com sua devoção cristã, ligado à expulsão dos franceses e fundação do Rio de Janeiro, em 1567, e ao sangrento Cerco de Bagé durante a Revolução Federalista, de 1893, foi um símbolo na obra de Glauco. É também a identidade visual do Festival Internacional de Cinema da Fronteira, que Zeca anima desde 2009, com o propósito de abrir espaço e chamar atenção para o audiovisual na região meridional do Rio Grande do Sul. É o lugar de uma geografia que Glauco integrou como estética na sua obra e que o filme reafirma em planos aéreos do alvorecer nos campos de Bagé alternados com as praias de Copacabana, num contraponto entre silêncio e recolhimento combinados com alegria e extroversão.
Assim como Glauco Rodrigues, Zeca Brito é tropicalista. Seus filmes não têm relação com a estética do frio teorizada por Vitor Ramil e associada à melancolia e a introversão que compartilharíamos com os vizinhos países do rio da Prata. Para além do senso comum, a Argentina é mais alegre do que faz supor a melancolia do tango, assim como o Brasil é mais triste do que a autoimagem que temos de povo em permanente estado de alegria. E o carnaval, tem mais dimensões do que o espetáculo internacional consagrado como atração turística carioca. Além de cineasta e gestor cultural, Zeca também é carnavalesco, faz parte do bloco Maria do Bairro, que desde 2007 anima o carnaval de rua em Porto Alegre.
Glauco do Brasil é pessoal em muitos sentidos. É evidente a admiração pela figura de Glauco, uma inspiração para o guri Zeca Brito que, aos 12 anos, entrevistou o pintor na festa de seus 70 anos comemorados em Bagé. O documentário, com 27 depoimentos, é costurado por essa joia do passado, filminho caseiro, testemunha do corpo a corpo da criança perguntando ao ilustre compatriota qual a mensagem que ele deixa para o grupo jovem de gravura da cidade. “Tem que seguir a intuição, tem que ser rebelde, não pode ouvir os mais velhos. Põe fogo no circo, vai em frente!”
Não há dúvida que Zeca vem se guiando pelas estimulantes palavras.
Publicado na revista Teorema Crítica de Cinema – nº 30 – Dez. 2018