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Cinema
Afinal, o que querem as mulheres?
18/11/2020
“Você é feliz?”, Isabelle pergunta ao motorista do táxi que a conduz pela noite iluminada de Paris. “Nem todo dia é fácil”, o homem responde com sincera honestidade e, para que uma boa música os anime no final de uma jornada difícil, liga o rádio na emissora estatal. Porém, nada de incomum aconteceu naquele dia: a ideia da vida como fluxo impregna Deixe a luz do sol entrar (2017), filme de Claire Denis, uma das diretoras mais originais do cinema mundial, homenageada pelo Festival Internacional de Mulheres no Cinema 2020. Nascida na França, criada na África, sua obra alterna entre abordagens do colonialismo e as relações contemporâneas interpessoais. Sobre esses e outros assuntos, e também o que lhe interessa no cinema, Denis fez uma masterclass especialmente para o evento paulistano.
Deixe a luz do sol entrar acompanha o cotidiano de uma artista plástica separada que busca o amor. O sexo não lhe basta, ela necessita apaixonar-se, mas da sucessiva troca de parceiros só acumula sentimentos de cansaço e frustração. Juliette Binoche, magnífica, entrega seu corpo para essa mulher insatisfeita. Desde o plano inicial, o que se vê é uma atriz inteiramente disponível para a câmera, que chora e sorri com uma sinceridade infantil como se as experiências vividas, inclusive da maternidade, não tivessem produzido em Isabelle nenhum daqueles ganhos de bem-estar trazidos pela maturidade. A personagem, ao contrário da atriz, busca algo que crê estar além do corpo. Ela persiste! Em sua insistente resistência de entregar-se ao puro prazer do sexo, o filme vai desenhando o atávico desígnio feminino de reproduzir a espécie. Deixe a luz do sol entrar me lembrou o majestoso final de Era uma vez no oeste (1968), em que a câmera vai se abrindo a partir do plano fechado sobre Claudia Cardinale e vai mostrando os trabalhadores e a estrada de ferro que avança. É do impulso de fixação da mulher à terra que se constrói a civilização. O tema subjacente é comum, mas não há nada mais distante da delicada crônica de Claire Denis do que o faroeste épico de Sergio Leone.
A originalidade da diretora está na maneira como conduz seu filme que dialoga com vertentes do cinema do cotidiano. Na conversa muito pessoal, gravada especialmente para o FIM20, Claire tributa admiração a Yasujiro Ozu, mestre do minimalismo em cuja lápide está escrito apenas o ideograma Mu, que significa Nada. Wim Wenders, do qual Denis foi assistente, filmou o túmulo para o documentário Tokyo-Ga (1985) que dedicou ao que é considerado o mais japonês de todos os cineastas. Denis – como fazia Ozu – quer apreender pela disposição dos elementos fílmicos o tempo que passa. (Gosto da promessa de insuspeitados e delicados prazeres sugeridos pelo título brasileiro A rotina tem seu encanto do último filme de Ozu, Sanma no aji, 1962). Em Deixe a luz do sol entrar quase não se percebe a passagem do tempo, as elipses são suaves, as luzes que brilham nos cafés, bares e restaurantes – entre dias e belas noites na capital francesa- não fazem diferença, pois Isabelle está concentrada em si mesma, na sua incontornável busca pelo amor. Não há excessos, a música entra para compor com as imagens o jogo da sucessão dos dias.
Porém, Denis é francesa – filha de uma cultura afeita à análise, verborrágica, que açoita o discurso até que entregue seus significados, e isso é o contrário dos filmes de Ozu, onde a narrativa é mínima e as palavras supérfluas. E assim Denis cria uma Isabelle incansável, que não se entrega, que pressiona o oráculo (um memorável charlatão interpretado por Gerard Depardieu) para que lhe diga qual dos homem de suas relações será o amor de sua vida. Nisso Deixe a luz do sol entrar é tributário do francesíssimo cronista que foi Éric Rohmer, com suas personagens indecisas, falantes, incapazes de encontrar aquela quietude que parece fluir com tanta facilidade nas culturas orientais que nossa fantasia ocidental tanto admira e inveja. Claire Denis olha tudo isso com sutil humor, mais um toque de sua leveza nesse que é um dos melhores filmes que vi nesse ano.
Deixe a luz do sol entrar (Un beau soleil intérieur, 2017) | Direção: Claire Denis, Roteiro: Christine Angot e Claire Denis, Elenco: Juliette Binoche, Xavier Beauvois, Philippe Katherine, Alex Descas, Gérard Depardieu | 1h34min | Na Plataforma Sesc Digital até 11 de dezembro de 2020.
FIM20 recebe Claire Denis – Conversa com a cineasta | Mediação de Robert Milazzo, da Modern School of Film de Nova York.