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Cinema
Alguém teria que ouvir o coração
26/12/2020
A cada estocada da morte ele dizia: “ainda não”! Tinha convicção (ou fé?) de que havia mais um filme a ser feito, que nenhuma de suas premiadas obras – Pixote, a lei do mais fraco (1980), O beijo da mulher aranha (1984) ou Carandiru (2003) – eram dignas da honrosa distinção obra-prima. Hector Babenco tinha 39 anos quando foi diagnosticado com câncer, na mesma época em que concorria ao Oscar de melhor diretor com Akira Kurosawa e John Huston, em 1986. Com um senso prático despido de sentimentalismo, manteve-se protagonista de sua existência até o fim, ao morrer com 70 anos, em 13 de julho de 2016. Bárbara Paz foi sua companheira dos últimos anos e o filme que dirigiu Babenco – alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou é ao mesmo tempo um poema audiovisual de amor e um réquiem laico para um artista que entregou-se inteiro ao Daimon da arte.
Que a obra de arte se confunda com a existência – é esse o chamado do artista? Em torno do sentido da palavra aventura Giorgio Agamben aponta que não basta vir ao mundo, é necessário também aventurar-se. Começa o pequeno e poderoso ensaio A aventura falando sobre o Demônio, no sentido que tinha na Grécia antiga, de espírito-guia e impulso vital. Ao Daimon grego ajunta a Tyche, divindade que numa antiga lenda egípcia simboliza a Sorte. Junto com o Amor e a Necessidade essas são as quatro forças que regem a vida de todos os seres humanos. Percorrendo filósofos, poetas e linguistas Agamben articula a relação entre os termos tyche, evento e aventura. “Que chova, é algo que acontece, mas isso não basta para fazer disso um evento: para que seja um evento, é necessário que, este acontecer, eu o sinta como um acontecer para mim”. Ao expressar as sensações advindas dos acontecimentos, pela palavra, aquilo que é acaso se transforma nos eventos em torno dos quais narramos quem somos em meio ao caos da existência. Porém, ainda não basta, mostra Agamben: é preciso aventurar-se! Não no sentido marqueteiro de tirar férias em algum lugar exótico e distante, mas no aspecto prosaico de aceitar o acaso e senti-lo como próprio. “Somente assim o evento, que em si não depende de nós, se torna uma aventura, se torna nosso – ou, antes, como dever-se-ia dizer, nós nos tornamos ele”. Não foi o que fez Hector Babenco? Ao transformar a desventura de uma doença na aventura do conhecimento de si e reflexão sobre o mundo pela “palavra” audiovisual do cinema.
Num determinado momento de Babenco – alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou o diretor explica para Bárbara como ela deve enquadrar, regular o foco, escolher aquilo que deseja mostrar. Babenco havia encenado sua doença no último filme que dirigiu, Meu amigo Hindu (2015), em que era interpretado por Willem Dafoe, e já havia contado a história de como saiu de Buenos Aires rompido com a família e foi para os Estados Unidos porque queria fazer cinema. Foi para evitar a punição de não ter prestado serviço militar na Argentina que ficou no Brasil, mas também atraído pela cultura viva e estimulante do país que acabou adotando. Mostrou como o prolongado tratamento contra o câncer esgotou seu casamento e como encontrou forças para viver, filmar e voltar a amar a partir da vontade de contar histórias. A última foi sobre a própria morte. Babenco – alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou ganhou o prêmio de melhor documentário no Festival de Veneza em 2019 pela excelência como articula o real, a fabulação, a memória e a história borrando a fronteira impossível entre arte e vida de uma pessoa que entregou-se aos acasos de sua existência. Babenco é codiretor do filme de sua morte e discute com Bárbara detalhes de ritmo, abordagem e duração. Porém, não há qualquer dúvida sobre quem assina esse filme-testamento que é também filme-amor.
O cineasta que visitou os rincões mais escuros da miséria humana – nos desgraçados personagens de Ironweed (1987) ou Carandiru (2003) – saiu de cena cantando Cheek to cheek, canção de Irving Berlin que é um hino à alegria e ao amor, imortalizada na voz de Fred Astaire. A referência ao cinema americano (no qual Babenco foi figurante em faroestes perdidos nas programações noturnas de canais de televisão que ninguém mais assiste) volta naquele que foi o momento em que a minha emoção transbordou em lágrimas: cena em que Bárbara Paz dança e canta Singing in the rain. Se você ficar indiferente a esse momento é porque não dimensiona o que significou Hollywood no imaginário do século XX, para pessoas como Babenco, nascido em Mar del Plata e que tinha 6 ou 7 anos quando essa joia da arte foi lançada, em 1952. O crítico Sérgio Augusto conta que todos os anos revê o musical de Gene Kelly numa espécie de ritual particular. Gesto que alimenta a alma, eu penso. Poderia terminar o texto aqui, elogiando a excelente montagem que combina imagens de Babenco no hospital ou em casa com fragmentos de seus filmes, tudo harmonizado num belíssimo tratamento em preto e branco. Isso é suficiente como prova da sensibilidade de Bárbara Paz no tratamento de assunto tão íntimo e privado como é a morte, ainda mais a do homem que amava. O roteiro de Babenco – alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou foi escrito com Maria Camargo e inclui um detalhe simbólico final. É a trilha sonora para a cena do jantar de despedida. Sim, Babenco fez uma festa de despedida com os amigos e desse encontro explode na tela Libertango.
Ouvir esse clássico de Astor Piazzolla dobrou meu coração porque lembrei de Sur (1988), que outro admirável argentino, Fernando Solanas (também falecido há pouco), realizou no retorno de seu exílio político. Os versos escritos por Solanas que pontuam o filme são inequívocos: “Vuelvo al Sur, como se vuelve siempre al amor, vuelvo a vos, con mi deseo, con mi temor. Llevo el Sur, como un destino del corazon, soy del Sur”. Para Solanas, animado pelo daimon da política, que nos anos 60 escreveu com Octavio Getino o manifesto por um Tercer Cine, não europeu nem norte-americano, mas latino-americano, amalgamado na furiosa afirmação de uma identidade continental, só havia um lugar no mundo onde pudesse se expressar como artista e pessoa: nel sur. Tudo isso nos leva a pensar nos milhões de seres humanos obrigados ao exílio, desgarrados por diásporas mundo afora, em diferentes regiões do planeta, no passado e no presente, para os quais a viagem é uma desventura que a melancolia do bandoneon de Piazzolla expressa tão bem!
Hector Babenco se diz no filme “judeu de lugar nenhum”, naturalizou-se brasileiro, filmou mazelas sociais aqui e nos Estados Unidos, voltou com sua câmera em mais de uma ocasião à Argentina natal e lá filmou temas mais existenciais deixando um grande legado artístico. O filme-poema Babenco – alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou demonstra, para além do memorial de uma pessoa, que o lugar onde a existência se dá plenamente é no amor daqueles que amamos e nos amam. Porém, para que seja vivido é preciso aventurar-se ao amor!
Babenco – alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou (2019) | Direção: Bárbara Paz, Roteiro: Maria Camargo e Bárbara Paz |75min | Produção: HB Filmes. Nos cinemas e em plataformas de streaming.
Meu Amigo Hindu (2015) | Direção: Hector Babenco, Roteiro: Hector Babenco e Guilherme Moraes Quintella, Elenco: Willem Dafoe, Maria Fernanda Cândido, Reynaldo Gianecchini, Selton Mello, Bárbara Paz | 2h4min | Produção: HB Filmes | Em streaming na Looke.
Sur (1988) | Direção e roteiro: Fernando E. Solanas, Elenco: Susú Pecoraro, Miguel Ángel Solá |2h7min| Em streaming no Belas Artes à La Carte.
A aventura. Giorgio Agamben. Tradução e notas: Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
Artigo publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 26 de dezembro de 2020.