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Apocalypse Now, um filme psicodélico
10/08/2020
É o filme mais impressionante já realizado sobre a guerra. Assim como o coronel Kurtz de Marlon Brando é tomado pelas circunstâncias e perde o rumo de sua vida, Francis Ford Coppola quase saiu dos trilhos para realizar esse monumental filme que de certa maneira ainda o assombra. Apesar do sucesso e do reconhecimento ao ser lançado em 1979 – ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes – em 2001 o cineasta lançou uma versão estendida chamada Apocalypse now redux, com 49 minutos de cenas inéditas e reedição da versão original e no ano passado apresentou a terceira versão Apocalypse now: final cut, no embalo do aniversário de 40 anos. O filme está na plataforma de streaming belasartesalacarte.com.br onde também podem ser vistos os documentários O Apocalipse de um cineasta (1991) e Dutch Angle: fotografando Apocalypse now (2019).
Segue aqui um artigo que escrevi e está publicado no livro Tio Sam vai à guerra: os conflitos bélicos dos Estados Unidos através do cinema (Letra&Vida Editora, Porto Alegre, 2010), uma coletânea de textos organizada por Cesar Augusto B. Guazzelli e outros professores de história. Durante anos eles desenvolveram, na Sala Redenção da Ufrgs, um belíssimo projeto de cinema e história com exibição e debates de filmes aos sábados à tarde. As temáticas eram anuais e ao final da temporada de estudos eram publicados textos dos filmes debatidos.
Apocalypse now, um filme psicodélico
Era intenção manifesta do cineasta Francis Ford Coppola fazer de Apocalypse now (Apocalypse now, 1979) um filme psicodélico. A proposta desta análise é compreendê-lo submetido a esse objetivo, tematizando a guerra do Vietnã, no contexto da contracultura dos anos 60. Considerado obra-prima do cinema, o filme evoca uma atmosfera de horror e delírio para revelar a loucura do ser humano em seu impulso irrefreável de destruição.
Picodelismo, o que é isso? Houaiss nos ajuda a estabelecer que se trata de um adjetivo para o qual se apresentam três definições: 1) como fármaco é o que está associado à produção de efeitos alucinógenos, sendo LSD a principal referência; 2) diz-se da produção intelectual elaborada sob o efeito de um alucinógeno e; 3) por extensão, diz-se de qualquer produção intelectual que se assemelha ou procura imitar as obras criadas sob efeito de alucinógeno. Quanto à etimologia da palavra: psic(o) + delo (grego dêlos, e, on) significa visível, claro, manifesto, evidente e se conecta com o sânscrito didéti [ele mostra] + ico. Ou seja, tanto em sua forma como na proposta do conteúdo, podemos supor que uma obra de arte psicodélica tem por objetivo mostrar algo que não é evidente no nível natural, de uma realidade cotidiana.
O projeto de Apocalypse now surgiu em 1969, como roteiro escrito pelo norte-americano John Milius, que também era diretor, inspirado pelo livro O Coração das trevas (Heart of darkness) do escritor britânico Joseph Conrad. A obra final guarda apenas lembrança do original literário, cujo enredo se passa no Congo durante o império colonial inglês, no século 19. A história foi transposta para a guerra do Vietnã e a narrativa acompanha o capitão Benjamin Willard (Martin Sheen) designado pelo alto comando do exército norte-americano para uma missão perigosa e secreta na selva cambojana. Ele deve localizar e matar o coronel Walter Kurtz (Marlon Brando), que já pertenceu à elite militar, mas agora teria enlouquecido e desaparecido na selva.
A jornada de Willard se desenvolve seguindo o curso de um rio, que ele percorre num barco de patrulha. Os quatro soldados que o acompanham constituem um grupo humano peculiar. Tem o adolescente negro Mr. Clean (Larry Fishburne), o comandante Chief Phillips (Albert Hall) que prefere nem saber o teor da missão, mas intui o perigo em vista do rumo que deve tomar com a embarcação, o cozinheiro Chef (Frederic Forrest) de New Orleans que entrou para a marinha em busca de boa comida e o surfista da Califórnia Lance Johnson (Sam Bottoms) que pega onda nas pausas entre a troca de tiros no campo de batalha. No trajeto eles se deparam com situações que beiram o inacreditável e o absurdo que compõem o cenário onírico do filme.
A narrativa se dá em primeira pessoa (voz do ator Michael Herr), o espectador é levado a compartilhar as experiências, sensações e sentimentos do personagem principal. Acompanhamos o capitão Willard em sua missão, compartilhamos as dúvidas que surgem na medida em que vai percebendo as contradições das ordens que recebeu e a falta de sentido da guerra que vai se revelando cada vez mais brutal. Kurtz é um militar de carreira, cursou West Point e tinha tudo para ascender na hierarquia, o futuro lhe sorria com a possibilidade de um alto comando. Mas, por algum motivo inexplicável dentro da lógica militar, ele insistiu até ser designado para a frente de batalha e se perdeu. Os relatos contraditórios informam que executou agentes duplos e comanda um grupo paramilitar. O espectador vai sendo informado junto com o protagonista, se assombrando junto com o personagem, penetrando na selva e mergulhando na insanidade de uma violência arbitrária. Esteticamente o filme se apresenta como uma viagem tal qual é a narrativa, de “revelação” para o personagem principal.
Apocalypse now é um filme chapado, é como uma viagem lisérgica que embaralha a percepção, conduz a um outro nível de consciência. Imagens se sobrepõem, se fundem e se confundem ritmadas por um som inebriante. Algumas manifestações da crítica sobre o filme nos remetem a esse sentido. Nos Estados Unidos, onde foi muito mal recebido na estréia (agosto de 1979) Coppola foi acusado por Andrew Sarris (no Village Voice) – justamente o crítico que mais defendia o cinema de arte – de “agredir os sentidos do espectador seduzindo-o unicamente pelas vísceras” (apud AUGUSTO, 2001). Ao contrário da crítica estado-unidense, a internacional adorou o filme desde a exibição no Festival de Cannes de 1979, de onde saiu com a Palma de Ouro de melhor filme. O crítico Pascal Bonitzer escreveu em outubro de 1979 na Cahiers du Cinema: “É menos um filme sobre a guerra do Vietnã do que sobre a psicose americana” (apud AUGUSTO, 2001).
É possível que nos Estados Unidos se esperasse um épico realista, mas Coppola fez uma epopéia poético-onírica. O filme é um grande delírio, uma viagem de LSD, uma “trip surrealista”, nas palavras do diretor. E isto está perfeitamente sintonizado com o espírito da época, ainda que Apocalypse now tenha estreado somente no fim dos anos 70. O projeto surgiu no final da década de 60 e o fato de ter levado dez anos para ser concluído decorre de questões próprias à realização de filmes e, também, de questões específicos ao projeto de Apocalypse now.
A contracultura e o cinema
A época de concepção do filme é o contexto de vigência da contracultura, a cultura jovem que se tornou matriz da revolução cultural no sentido mais amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos informa Eric Hobsbawm (1995). O termo ganhou notoriedade e relevância a partir de meados do século 20 em decorrência de movimentos artísticos, político-universitários e de comportamento dos jovens, sendo definido como:
O conjunto de comportamentos, valores e obras que, de maneira desafiadora e contestadora, opõe-se, de um lado aos códigos sociais, aos sistemas político-ideológicos ou às tradições artísticas vigentes e hegemônicas; e, de outro, reivindica novos modelos e formas expressivas não-convencionais no âmbito sociocultural ou mesmo à extinção de regras condutoras. (CUNHA, 2003, p.183).
O maio de 68 na França foi o evento-ápice desta revolução cultural jovem, estética e de comportamento, o poder jovem. No cinema essa transformação se caracterizou pela chegada de uma geração que se opunha ao sistema discursivo, estético e de produção vigentes. A Nouvelle Vague na França, da qual os nomes mais conhecidos são os dos cineastas Jean-Luc Godard e François Truffaut é apenas o movimento mais conhecido de uma onda que pegou todas as cinematografias no mundo: no Japão, na Tchecoslováquia, na Alemanha e no Brasil. Nos Estados Unidos configurou-se com o nome de Nova Hollywood, termo batizado pela imprensa ao identificar o surgimento de filmes realizados por uma nova geração de diretores. Foi somente nesta época, num período restrito de dez anos, que o cinema nos Estados Unidos foi comandado por diretores e não pelos estúdios.
Na era dos estúdios grandes, entre os anos 30 e 50, diretores como John Ford ou Howard Hawks, ainda que fossem geniais, eram apenas empregados, contratados dos estúdios para a realização de filmes. Na Nova Hollywood, quem dava as cartas eram os diretores, eram eles que diziam aos produtores e chefes de estúdios como os filmes deveriam ser feitos. Isso está muito bem explicitado no livro de Peter Biskind Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood, que aborda os acontecimentos do período entre dois filmes emblemáticos, o inaugural Sem destino (Easy riders, de 1969), dirigido por Dennis Hopper e Touro indomável (Raging bulls, de 1980), assinado por Martin Scorsese.
Francis Ford Coppola faz parte desta geração que inclui nomes como os de Stanley Kubrick, Dennis Hopper, Woody Allen, Arthur Penn, John Cassavetes, entre outros. São aqueles nascidos no fim da década de 30 (Coppola nasceu em 7 de abril de 1939) e que vão atuar nesse cenário dos chamados baby boomers, nascidos após a Segunda Guerra Mundial. É a geração das escolas de cinema: Martin Scorsese, Steven Spielberg, George Lucas, Jonh Milius, Paul Schrader, Brian De Palma e Terrence Malick.
O que caracteriza a obra cinematográfica desse grupo? O conceito de autor. Essa ideia que havia animado os críticos franceses em torno da revista Cahiers du Cinema e os cineastas da Nouvelle Vague de que o diretor é como um escritor que imprime no filme sua estética e visão de mundo, foi levada para os Estados Unidos pelo crítico Andrew Sarris, que escrevia no Village Voice. Os diretores passam a ter um poder ilimitado que é decorrente de uma combinação: a crença dos diretores de que fazem uma obra de arte e não um produto de mercado e a crise do modelo dos estúdios como grandes aparatos, empresas rígidas com centenas de empregados. Nesse vão, são criadas algumas obras-primas do cinema moderno, arejadas por ventos de liberdade criativa que não havia até então.
Coppola entrou para a UCLA, a Universidade da Califórnia em Los Angeles em 1963. É interessante o que diz o cineasta Walter Murch, que iria revolucionar o conceito de som no cinema junto com George Lucas: “Íamos estudar cinema porque estávamos interessados no assunto, mas também era uma garantia de não ser convocado” (apud BISKIND, 2009, p.38). A guerra da Vietnã posiciona os sujeitos, esses jovens com espírito crítico.
Coppola foi o personagem de um gesto inédito na indústria do cinema até aquele momento: fez a transição de estudante diretamente para diretor de um filme. Dirigiu Agora você é um homem em 1966, a partir de um roteiro dele mesmo, o que não era comum. Um aspirante a diretor deveria passar por várias etapas dentro do estúdio até chegar a comandar um filme. Ele tinha 27 anos e isso representou uma ruptura no sistema que abriu caminho para o poder do artista. Pouco tempo depois, quando os executivos da Paramout não sabiam o que fazer com um roteiro que haviam recebido, baseado no livro O poderoso chefão do escritor italiano Mário Puzzo, chamaram Francis Ford Coppola. Nascido em Detroit, tinha origem numa família italiana e era um artista. O resultado foi um sucesso extraordinário, tanto de público quanto de crítica. Como roteirista e diretor da segunda parte, de 1974, ele alcançou sucesso espetacular num gênero comercial mantendo a criatividade pessoal. Com isso alcançou um poder, um sucesso e uma fama nunca antes experimentados. Ele tinha 35 anos e a juventude tinha tomado o poder. Foi nesse espírito que iniciou, em março de 1976, Apocalypse now, com o sentimento de um poder ilimitado, que se reflete no filme, enquanto capacidade crítica da realidade e no processo de realização.
Os bastidores do filme
Com o objetivo de controlar a produção e o processo artístico e, também ter mais lucro, Coppola decidiu filmar sem o dinheiro dos estúdios. Ele tinha sua própria produtora a Zoetrope criada em sociedade com George Lucas e Walter Murch, em 1968. Aliás, Lucas seria o diretor inicial de Apocalypse now…. bom, sabemos que ele foi por outro lado, fez na época Loucuras de verão (American graffiti, 1973) um filme saudosista: “Decidi que era hora de fazer um filme do qual as pessoas saíssem se sentindo melhor do que quando entraram no cinema” (apud BISKIND, 2009, p.246). Estava se referindo ao conteúdo contestador e crítico dos filmes realizados pela Nova Hollywood. O período de contestação daria logo sinais de esgotamento sinalizado pelo interesse do público em outro tipo de espetáculo, a saga Guerra nas estrelas (Star wars), que Lucas inaugurou em 1977 com bilheterias recordistas na história do cinema.
Coppola havia enriquecido em decorrência do sucesso da série O poderoso chefão, o que lhe havia permitido, inclusive, adquirir uma cadeia de cinemas para exibir os próprios filmes e ter, assim, mais autonomia em relação ao sistema. Vendeu os direitos de distribuição de Apocalypse now e conseguiu U$ 17 milhões para iniciar a produção [7 milhões de distribuidores europeus e outros 10 milhões da United Artists pelo território dos Estados Unidos]. O lançamento foi planejado para 7 de abril de 1977, dia de seu aniversário de 38 anos. O embarque para as Filipinas, onde foram realizadas as filmagens, aconteceu em 1 de março de 1976, com uma previsão de 14 semanas de filmagens, o que daria 108 dias. De verdade, ficaram por lá o dobro do tempo e o filme estreou apenas em agosto de 1979, dois anos depois do previsto com um custo final de 40 milhões de dólares, bem acima do orçamento inicial. Pagou-se em seis meses, foi indicado a oito categorias do Oscar, ganhando de melhor som para Walter Murch e para a estupenda fotografia do italiano Vittorio Storaro. Também recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes.
Uma parte significativa dos problemas enfrentados para a realização do filme pode ser atribuída a esse sentimento de poder do qual Coppola estava investido, que se manifestava como megalomania e arrogância. Contra todas as recomendações, decidiu filmar nas Filipinas onde a logística era dificílima e o deslocamento entre as locações só era possível de avião. Também recusou as advertências sobre o período que escolheu, o da estação das chuvas. A natureza cumpriu seu ciclo e um tufão que atingiu a ilha destruiu sets de filmagem encerrando de maneira lamentável a primeira fase das filmagens. De volta aos Estados Unidos, depois da primeira etapa, só tinha oito minutos de filme aproveitável.
Os atores também foram motivo de uma sucessão de problemas. Ninguém queria filmar na selva, em locações difíceis e péssimas condições. Foi difícil montar o elenco. Logo no início o ator Harvey Keitel, que interpretava o capitão Willard desistiu e foi substituído por Martin Sheen, obrigando a refilmagem de cenas. Marlon Brando foi convencido a viver o coronel Kurt por um cachê de um milhão de dólares por semana durante três semanas e 11% da renda bruta. Quando chegou, na segunda fase de filmagens, era evidente que não tinha lido nem o livro, nem o roteiro. Entre os relatos sobre as filmagens narrados por Biskind, está o de que Coppola teria se trancado com o ator num trailer e lido o livro e o roteiro em voz alta. Mesmo assim, no momento de filmar, Marlon Brando improvisou do seu modo. Outro problema com o elenco foi o ataque cardíaco sofrido por Martin Sheen, durante a cena de abertura, o que também obrigou uma parada geral nas filmagens.
Nesses intervalos, enquanto esperavam, diretor, atores e equipe passavam o tempo com o que então era vigente no contexto da contracultura: sexo e drogas. A liberação sexual dos anos 60 proporcionou um tipo de vivência sexual totalmente nova e descompromissada, mais do que isso, representava uma afirmação política: “Liberação pessoal e liberação social, assim, davam-se as mãos, sendo sexo e drogas as maneiras mais óbvias de despedaçar as cadeias do Estado, dos pais e do poder dos vizinhos, da lei e da convenção.” (HOBSBAWM, 1995, p.326). O consumo de drogas incluía LSD, maconha, anfetaminhas, álcool e cocaína. Essa geração do cinema é tão marcada pela droga que Dennis Hopper, o lendário diretor de Sem destino, não conseguia fazer nada sem o apoio de algum elemento químico. Não tendo mais conseguido dirigir, trabalhou como ator em projetos nos quais os roteiros eram assinalados com orientações sobre o tipo de droga que deveria ser ingerida para o desenvolvimento da cena. Em Apocalypse now a qualidade da composição de seu personagem tem a intensidade de um estado alterado. Ele é o fotógrafo que já não tem consciência dos limites da experiência da qual deveria atuar como testemunha. Transformou-se em mais um dos adoradores de Kurtz, é o bufão na corte de um rei anacrônico. Kurtz virou ídolo endeusado por uma tribo de montanheses no interior da selva de um país convulsionado pela guerra. O cenário é de horror, uma fantasmagoria formado por crânios e corpos em decomposição.
A terceira fase de Apocalypse now, da montagem, foi igualmente longa, com várias edições e reedições até o lançamento no ano de 1979 com uma duração de 155 minutos. Em 2001 o próprio Coppola lançaria nova versão, de 196 minutos, agregando ao título a palavra Redux, que em latim significa retorno. A versão original é um documento mais relevante para compreender a inserção do filme no contexto histórico do que a segunda versão, mais importante do ponto de vista da satisfação dos objetivos artísticos do cineasta. A experiência toda da realização do filme beirou o pesadelo e está registrada no documentário O Apocalipse de um cineasta (Hearts of darkness: a filmmaker’s Apocalypse), de 1991, idealizado por Eleonor, esposa de Coppola e assinado por Fax Bahr e George Hicknlooper.
A arte
Com toda a sofisticação visual que apresenta, Apocalypse now é reflexo do seu tempo. É um documento da época também em termos sonoros. O rock’n’roll nos anos 60 se tornou elemento fundamental no cinema. E isso aconteceu a partir de Sem destino com a emblemática abertura ao som de Born to be wild, interpretada pela banda Steppenwolf. Não foi menor o impacto da música em Apocalypse now. A seqüência de abertura apresenta o tom pela canção The end, de Jim Morrison, o vocalista e líder da banda The Doors que morreu aos 27 anos, em 1971, em Paris, possivelmente por overdose. Os versos de The end (O fim) fazem a transição entre o delírio e a realidade, confundem esses limites ao se misturarem com o som dos helicópteros que soltam napalm numa floresta em chamas.
A presença da música em Apocalypse now é elemento estético que contribui para acentuar a irracionalidade da guerra. Tornou-se antológica a sequência com o trecho retirado da ópera A cavalgada das valquírias, pertencente à tetralogia O ouro do Reno, composta por Richard Wagner. A música é utilizada pelo personagem de Robert Duvall, o tenente-coronel Bill Kilgore, para estimular os soldados durante os ataques aéreos. Provoca assombro no espectador, mesmo efeito que causa nas populações assustadas e arrasadas pela artilharia e pelo napalm jogado dos helicópteres. É a mesma sensação na seqüência do show das coelhinhas da Playboy. Ao som da canção Susie Q do grupo Creedence Clearwater Revival elas descem de helicópteros num palco improvisado para uma turba enlouquecida de soldados. É uma falsa promessa de prazer porque quando o inevitável acontece e eles se jogam sobre as moças elas são imediatamente resgatadas pelos mesmos helicópteros nos quais chegaram. A seqüência espetacular imprime ao filme uma adrenalina misturada com estranheza pelo paradoxo entre realismo e irrrealismo da situação.
Os versos de The end narram a história do garoto que mata a família. Começam demarcando a mudança cultural da época: This is the end (Este é o fim), Of our elaborate plans, the end (Dos nossos elaborados planos, o fim), No safety or surprise, the end (Sem salvação ou surpresa, o fim). Indicam a grande revolução cultural dos anos 60. Nas palavras do historiador Eric Hobsbawm, a melhor abordagem possível sobre a revolução que aconteceu naqueles anos é através da família e da casa, da transformação na estrutura de relações entre os sexos e as gerações (1995, p.314). Começava a dissolução do modelo de família nuclear, padrão da sociedade ocidental nos séculos 19 e 20, baseada no patriarcado, na autoridade superior dos pais em relação aos filhos e aos mais jovens de modo geral e no casamento formal com relações sexuais privilegiadas entre os cônjuges. Mais adiante na canção, dizem os versos do The Doors: Father? Yes son. I Want to kill you (Pai? Sim filho? Eu quero te matar) e Mother…. i want to… fuck you (Mãe… eu quero… te foder).
As palavras finais de Kurtz “O horror! O horror!”, na voz rouca de Marlon Brando remetem para a revelação de uma cena sem lugar na realidade cotidiana. É a intenção do filme, desde o título. A palavra apocalipse do grego apokalúpsis significa ato de descobrir, revelação. Diz respeito à literatura escatológica, especialmente ao último livro do Novo Testamento, no qual, pela profecia, revela-se a verdade por meio de imagens assustadoras.
Nas palavras de Herbert Marcuse, a arte é revolucionária numa dimensão estética em que a forma se torna conteúdo. Através do mundo irreal, da realidade fictícia que cria, a arte pode conter mais verdade do que se reconstituisse os fatos com fidelidade histórica. Para cumprir uma função crítica, no entanto, deve sempre partir da realidade, desse mundo cotidiano ao qual nos referenciamos, no caso de Apocalypse now o fato histórico da guerra do Vietnã. A arte se realiza quando essa realidade é transcendida para que se revele em sua essência, em sua verdade. A guerra do Vietnã representou para os Estados Unidos a quebra da uma estrutura psicológica. Mais do que falar sobre o Vietnã, Apocalypse now dá conta de uma ruptura, de uma quebra, de um retorno impossível. É o documento de uma época.
Referências
Apocalypse now. Direção: Francis Ford Coppola. Produção: Francis Ford Coppola. Roteiro: John Millius e Francis Ford Coppola. Intérpretes: Marlon Brando, Robert Duvall, Martin Sheen, Frederic Forrest, Albert Hall, Dennis Hopper e outros. Música: Carmine Coppola e Francis Ford Coppola. Los Angeles: Omni Zoetrope, 1979. 1 DVD (155 min), widescreen, color. Produzido por Universal Studios, 2009.
AUGUSTO, Sérgio. Um apocalipse como Zaratustra teria filmado. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 22 dez. 2001. Caderno 2, p. 3.
BISKIND, Peter. Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood: Easy riders, Raging bulls. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009.
CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo: Perspectiva/Sesc São Paulo, 2003.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009.
LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. Lisboa: Edições 70, 1999.
MONTERDE, José Enrique y RIAMBAU, Esteve. Historia general del cine: nuevos cines (años 60). Madrid : Ediciones Cátedra, 1995.