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Cinema
Página do Juliano Dupont
Bob Dylan
06/03/2025

O cinema é para mim mediação e ponte para o mundo em diversos aspectos. Foi assistindo ao filme de Martin Scorsese No direction home (2005) que tomei ciência de um cara chamado Bob Dylan (!)… que vou fazer, é isso, o cinema é minha maravilhosa janela para tudo. Porém – e aqui faz toda a diferença – só vi o filme em 2016, quando Dylan esteve em Porto Alegre e se apresentou no Pepsi On Stage. Assisti numa cópia em DVD do Juliano Dupont, que além de amor trouxe para a minha vida um background que alargou minhas referências musicais. Mais adiante, pedia aos alunos no CRAV que vissem Rolling Thunder Revue (2019) no qual mais uma vez Scorsese adentra o mundo Bob Dylan, jogando com verdades e falsidades e, por isso, era um exercício bacana que me ajudava a abordar estudos de recepção em teorias do cinema. Em 2021 Juliano complementou a aula e seu entusiasmo e conhecimento de Dylan fizeram toda diferença naquela tarefa acadêmica que também tinha o objetivo de apresentar a eles um sujeito inspirador.
Compartilho o texto que Juliano escreveu sobre Dylan a propósito do filme Um completo desconhecido (2024) em sua página Negativo Operante.
O Enigma Vazio
Bob Dylan: Um Completo Desconhecido
Vemos agora um enigma, através de um espelho; mas depois veremos cara a cara. Hoje conheço em parte; amanhã conhecerei tudo, na medida em que também eu fui conhecido. (1 Coríntios 13,12)
Quem procura o Jesus histórico, afirma Harold Bloom, só consegue encontrar uma pálida imagem, distorcida, de si mesmo. “A não ser pelo Hamlet shakespeariano”, escreve Bloom em Jesus e Javé, “não me ocorre outra figura tão volátil quanto Jesus; ele pode ser tudo, para todos os seres humanos. Como Hamlet, Jesus é um espelho no qual nos vemos”.
Mestre da sapiência obscura, como lhe chama o grande crítico de literatura, Jesus nos confronta a todos, fiéis e infiéis, com um conjunto de enigmas através de parábolas e aforismos. Uma das mais fortes declarações de Bloom, um judeu, é que “Toda a ironia ocidental é uma repetição dos enigmas/charadas de Jesus, em amálgama com as ironias de Sócrates”. Bloom prefere, aos canônicos, o evangelho apócrifo de Tomé, justamente porque neste o Jesus aforístico e misterioso aparece em toda sua plenitude.
A grande pergunta da história ocidental é feita pelo próprio: Quem sou eu, indaga Cristo em mais de um trecho dos Evangelhos. A historiografia tenta elucidar o Jesus real, inutilmente: o mito vira história, a história se mitifica – e, por fim, o mito triunfa.
Bloom sustenta que Jesus é o enigma dos enigmas. Enigma etimologicamente remete a fábula e apólogo, isto é, a uma narrativa. A mitologia se agiganta, tanto com as volumosas contradições em diferentes versões do personagem real quanto com suas variações fabulosas, todas se incorporando à história e ao mito indistintamente. O enigma vai se tornando mais enigmático.
Como Jesus, todo aquele que procura Bob Dylan acaba por encontrar a si próprio. Procuramos saber quem ele é e encontramos um vazio, ou um quarto de espelhos. Gênio mitômano, Robert Allen Zimmerman mentiu desde o início, para todos e para si mesmo. Ele não está aqui nem lá, seu lar é lugar algum, mas quando canta está em todas as partes. Ele é o jokerman, o mistificador, o peregrino, o mentiroso que vê toda a verdade.
Harold Bloom não apreciaria uma comparação entre Bob Dylan e Jesus. Não gostava de cultura popular, muito menos de música pop, e trucidava com ironia ferina a tendência contemporânea de estudar como literatura a letra de cantautores. Eu também lamento, mas pelas razões opostas à de Bloom.
O que me entristece não é a depauperação da alta cultura, como chorava Bloom, mas a oficialização da contracultura através de instâncias legitimadoras como a Universidade ou prêmios prestigiosos, como o Nobel.
O rebelde, quando bem sucedido, torna-se o establishment. Antes, ele quebrava as regras; agora, com sua revolta vencedora no plano histórico, ele dita as regras. A revolução termina derrotada pelo próprio sucesso.
Alfred Nobel criou o prêmio que leva seu nome para se redimir da imagem de “mercador da morte” que lhe era atribuída pela invenção da dinamite. Pois eu acho que o prêmio Nobel causou mais males à humanidade do que a dinamite. A sua lista de premiados em literatura é composta de uma maioria de medíocres merecidamente abandonados ao esquecimento. A melhor lista do Nobel de literatura é a dos que não ganharam. O que eu lamento é Dylan ter aceitado o Nobel. Preferiria que tivesse feito como Sartre, rejeitando-o soberbamente. Pelo menos, ao não comparecer à cerimônia, enviando Patti Smith como embaixadora, escarneceu da Academia Sueca.
Voltando ao assunto: para trazer mais mistificação à infinita mitologia, acaba de estrear Um Completo Desconhecido, cinebiografia dirigida por James Mangold.
Dylan participou da criação do filme lendo o roteiro com o diretor e dando palpites. À revista Variety, Mangold disse que Dylan se envolveu com o projeto porque estava “sem nada para fazer no momento” devido ao cancelamento de uma turnê, em 2020, em função da pandemia de covid-19.
Para quem conhece a cronologia e, mais ou menos, os fatos acerca de Dylan, o novo filme pode ser desnorteador. As coisas não aconteceram daquela maneira, nem naquela ordem, e a respeito das que aconteceram, trocam e amalgamam alguns personagens e se alteram as datas.
Mas que importam as imprecisões e as incorreções da história? Com Dylan, o apócrifo é o mais verdadeiro. Leio na revista Rolling Stone: “o próprio Dylan insistiu supostamente por mudanças ainda maiores da verdade. De acordo com Edward Norton, o artista disse a Mangold para incluir pelo menos uma cena ‘totalmente imprecisa’ no roteiro, mas o diretor ficou com medo dessa escolha irritar a audiência: ‘Por que você se importa com o que as outras pessoas pensam?’, perguntou Dylan”.
Não foi apenas uma cena imprecisa. Foram inúmeras. Pete Seeger nem de longe teve na realidade o papel de mentor que o filme lhe atribui, e o escândalo em Newport 1965, quando Dylan tocou música “elétrica”, é ainda mais fabuloso do que na memória das pessoas que aparecem no documentário No Direction Home, de Scorsese, com as versões discrepantes a respeito Pete Seeger querendo cortar, a machadadas, os cabos da mesa de som.
Joan Baez nunca cantou Girl from the north country, muito menos ao lado de Dylan. Para mim, foi a invenção mais linda do diretor do filme: Timothée Chalamet e Monica Barbaro cantam muito bem, num entrosamento romântico cheio de subentendidos.
O que eu não gostei foi o retrato de Suze Rotolo, muito abaixo de seu real encanto. Foi ela quem apresentou a Dylan o mundo politizado e culto de Nova Iorque; principalmente foi Rotolo quem o levou a conhecer a música de Bertold Brecht e Kurt Weill. Foi numa peça de Brecht em que Suze trabalhava que Dylan percebeu a canção como uma “pequena peça de teatro”, além da impressão que lhe causou a força brutal dos versos do autor alemão. Todos os nomes dos personagens no filme são verdadeiros, menos o de Rotolo, que virou Sylvie Russo a pedido de Dylan para respeitar sua privacidade (no caso, privacidade no além – Suze está morta há 14 anos). Na vida real, Suze era a musa arrebatadora. No filme, a atriz Monica Barbaro é tão linda e tão excelente em sua interpretação que acaba roubando todo o encanto de Suze para o seu personagem como Joan Baez.
Seria ocioso, e inútil, tentar por em ordem e corrigir factualmente a história contada na nova película. O filme toma liberdades a serviço de sua dramaturgia – e está tudo bem. Os momentos musicais do filme são o seu melhor. Os números musicais Dylan/Baez representados por Chalamet e Barbaro são arrebatadores. Para atender, porém, sua proposta de entretenimento, o filme precisa simplificar ao máximo a complexidade de Bob Dylan.
Outra coisa que me chateia um pouco é a obsessão com esse início, a chegada em NY em 1961. Haveria muitas outras épocas para o cinema explorar, como a fase cristã, ou o interregno entre 66 e 74, quando Dylan parou de se apresentar, ou mesmo a sua grande retomada a partir de Time out of Mind em 1997.
1961 é o princípio da mitologia: uma espécie de jornada do herói maldito. Ele vem de lugar nenhum, visita Woody Guthrie moribundo em uma cama de hospital e toca sua composição em honra do mestre, como se pedisse a benção e ao mesmo tempo cumprisse uma peregrinação que, depois de realizado ritual, o libertasse da tradição para trilhar o seu próprio caminho, para que virasse Bob Dylan. É impressionante, sim, porém nada em audiovisual supera o filme de Scorsese: No Direction Home.
Em Crônicas, o livro autobiográfico (autoficcional, na verdade) publicado em 2004, Dylan inventa, confunde, embaralha, mente. É delicioso. Com Dylan, a verdade são as mentiras. Quem quiser se aproximar um pouco mais dos fatos precisa ler as biografias escritas por Clinton Heylin, não traduzidas em português.
Dylan engoliu todo o cancioneiro americano. Com carregado moralismo e bela linguagem bíblica, Blind Willie Mctell é uma de suas obras-primas que concentram a história da canção americana.
A mitologia não terá fim. Como no filme, também de Scorsese, Rolling Thunder Revue, o ficcional não se distingue do real. Qual é o mistério? Provavelmente, como em Jesus e toda a religião, é que não há mistério algum. Para Wittgenstein, “a solução do enigma é que não há enigma”. Mas não adianta: continuamos fascinados e, transbordando de prazer, somos tragados dentro do abismo pelo vórtice da paixão.
P.S.:
1 – Melhor piada de Conan O’Brien no Oscar: Para interpretar Bob Dylan, Timothée Chalamet aprendeu a cantar tão bem que quase perdeu o papel.
2 – Em torno dos 28m, Peninha comenta sobre duas pinturas que Bob Dylan fez durante uma viagem incógnito no Vale dos Vinhedos em Bento Gonçalves, em 1998. Foi publicado numa coleção chamada The Brazil Series. Aqui.

Artigo de autoria de Juliano Dupont reproduzido de sua página Negativo Operante.