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Cinema
Cem anos de solidão é adaptação à qual o autor não se oporia
02/02/2025

Tinha razão García Márquez em desconfiar da transposição para o cinema da monumental jornada da família Buendía na cidade fictícia de Macondo que escreveu como um romance-poema lírico e mágico. Se opunha não por gesto arrogante de vencedor do Nobel de literatura, mas por zelo de conhecedor das diferenças das linguagens. Entre suas experiências iniciais como escritor nos anos 1950 foi repórter e crítico do El Espectador – jornal mais antigo da Colômbia, em circulação desde 1887 – e como correspondente enviado à Europa foi estudar cinema no Centro Experimental de Roma. Participou de alguns filmes e, a partir de histórias originais, escreveu roteiros para Erêndira (1983) e A Bela Palomera (1988), dirigidos por Ruy Guerra. Atento à formação em audiovisual na América Latina, foi um dos fundadores da Escuela Internacional de Cine y Television de Cuba, em 1986. Se a literatura cria na mente dos leitores mundos atiçados pelo poder sugestivo das palavras, no cinema os mundos imaginados devem materializar-se para encantamento do olhar. Sabedor do desafio que seria representar o universo fantástico, porém ainda realista do estilo do qual Cem anos de solidão, lançado em 1967, é epítome, se opunha a adaptação cinematográfica: “Prefiero que mis lectores sigan imaginándose mis personajes”.
Com mais de 50 milhões de exemplares vendidos, a história que criou precisava ser mostrada. Cem anos de solidão não é extenso, mas sem dúvida é caudaloso. Quando li no início dos anos 1980 recomendava-se fazer junto uma árvore genealógica (hoje tem na internet) sob o risco de se perder o fio do enredo iniciado com o casamento de José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán. Entre metade do século XIX e começo do século XX, sete gerações da família amaldiçoada por um casamento consanguíneo vivem com emoção intensa situações da vida comum e se envolvem em fatos históricos que marcaram o país. A transposição para o cinema do labiríntico relato de um narrador onisciente – saído de dentro da história, que conhece todos os acontecimentos e sentimentos dos personagens – era impraticável e fatalmente destruiria a essência da obra. No formato atual das narrativas seriadas a conversa mudou de tom, mas ainda assim havia impedimentos. Uma negociação bem articulada entre Netflix e a família de García Márquez garantiu filmagens na Colômbia, equipes técnicas e elenco da América Latina resultando num marco para a produção audiovisual do continente.
Concebida em duas temporadas, a primeira de oito episódios, a série foi lançada no final de 2024 depois de mais de um ano de filmagens num imenso set construído numa região ao sul da Colômbia. Mais de mil profissionais trabalharam para erguer a Macondo imaginada por García Márquez no meio de um pântano à beira do Caribe. Todos os objetos e figurinos que aparecem em cena foram produzidos e fabricados por artesãos colombianos a partir de materiais próprios da região e exaustiva pesquisa de época. O maior problema era tornar visualmente convincentes situações absurdas e surreais vividas com naturalidade pelos personagens impregnados da cultura do Caribe: uma mescla de misticismo católico com crenças religiosas indígenas e de origem africana. Isolados no povoado que fundaram, se surpreendem com modernidades exibidas como magia por ciganos mambembes. Deste choque cultural García Márquez criou uma das mais notáveis cenas de abertura da história da literatura: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.
A série é tão exuberante e bem-feita que se lamenta não poder assistir na tela grande de uma sala de cinema. Chamam atenção virtuosos planos-sequência que operam através da linguagem audiovisual grandes sínteses da narrativa literária. O plano-sequência, como tomada de câmera sem cortes, envolve o espectador na continuidade do espaço e do tempo estabelecendo relações entre múltiplas cenas. Assim é introduzida Macondo, no primeiro episódio, um povoado erguido onde antes era charco percorrido pela câmera que acompanha o primogênito José Arcádio, menino peralta já caracterizado com a vigorosa energia que será sua benção e maldição no futuro.
Os eventos fantásticos do livro poderiam ser criados com as avançadas tecnologias de pós-produção e finalização digital tão comuns no audiovisual contemporâneo. Não é o que acontece. Cenas produzidas e filmadas como a chuva de milhares de flores amarelas que caem sobre as casas e se acumulam nas ruas anunciando a morte do velho patriarca José Arcádio são puro encantamento. Alguém poderá argumentar que não há diferença entre imagens de tomada de câmera ou criadas digitalmente para fins de simbolização, afinal, o significado das flores amarelas – seja qual for – não mudará. As distinções, porém, existem e a principal corresponde aos efeitos de credibilidade, ainda que tudo seja mentira no cinema.
Um dos produtores junto com Netflix é Rodrigo Garcia, cineasta e filho de García Márquez. Percebe-se na formação das equipes, além do cuidado com o procedência latino-americana, a paridade nas funções entre homens e mulheres. Jovens e talentosos o colombiano Paulo Andrés Perez (série A cabeça de Joaquín Murrieta, 2023) e a mexicana Maria Sarasvati Herrera alternam-se na condução das equipes de fotografia. A direção geral dos episódios tem à frente o cineasta argentino Alex García López, com experiência em séries, e a colombiana Laura Mora, que em 2012 codirigiu a série Pablo Escobar: O senhor do tráfico e ganhou em 2022 o prêmio principal no Festival de San Sebastián com o filme Os reis do mundo. O primeiro tratamento do roteiro foi feito pelo dramaturgo e roteirista porto-riquenho José Rivera e o desafio foi a criação de diálogos numa longa história em que predominam as descrições dos acontecimentos e dos estados emocionais dos personagens.
Na linha de frente um casting com DNA latino-americano de atores e atrizes em desempenhos de excelência. Escolhidos entre mais de 10 mil candidatos – hablando español – preservam o caráter e a ambiência originais do livro. Falecido em 2014, Gabriel García Márquez tinha pavor que seus personagens tão singulares e típicos da cultura colombiana-caribenha viessem a ser fixados com rostos de astros hollywoodianos. Para ficar só no trio protagonista principal na fase adulta certamente aprovaria a encarnação de Aureliano Buendía no corpo de Claudio Cataño e seus pais Úrsula e José Arcádio na pele de Marleyda Soto e Diego Vásquez, artistas colombianos experientes. O elenco sem estrelas que combina atores e atrizes veteranos com revelações jovens também contribui para a veracidade dramática.
A versão audiovisual de Cem anos de solidão (cuja segunda temporada está prevista para junho de 2025) é bem-sucedida de três perspectivas: como criação artística dá conta da arriscada tarefa de adaptar uma obra-prima consagrada da literatura; como produto da indústria criativa fez movimentar a economia do audiovisual envolvendo profissionais de diversos segmentos da Colômbia onde foi produzido e filmado e, por fim, como expressão da identidade latino-americana no contexto da globalização cultural. No emaranhado catálogo da plataforma mais poderosa de streaming, na qual séries sul-coreanas, asiáticas, árabes, europeias, nórdicas, faladas em inglês etc. disputam corações e mentes das audiências mundiais, se acrescenta agora um produto de excelência oriundo da América Latina. É um feito geopolítico-artístico-cultural a se comemorar.
Artigo publicado no jornal Correio do Povo em 01 de fevereiro de 2025.