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Cinema e Literatura: da Intenção de Reduzir o Risco ao Desafio da Adaptação
02/06/2018
Quando se faz a aproximação entre cinema e literatura são comuns frases do tipo “o livro é melhor do que o filme”, “o filme é fiel ao livro”, “prefiro o filme ao livro” e outras tantas. Para além de manifestações de gosto, o que interessa são as inúmeras relações possíveis entre essas duas formas de expressão artística do ser humano. Podemos investigar o que há de comum e de diferente entre elas. A literatura tem sido fonte de inspiração para o cinema desde os primórdios. O material criativo para um filme vem de muitas fontes: notícia de jornal, teatro, histórias originais, etc. A vantagem da literatura, especialmente no caso de um best seller, é a consagração já dada pelo público. Isso explica porque 80% dos filmes da indústria cinematográfica são baseados em literatura. Trata-se de uma atividade econômica em que a redução de riscos é uma vantagem. O direito autoral foi instituído em 1910 e desde então, adaptação é um bom negócio.
Literatura e cinema são linguagens, ou seja, sistemas de códigos, convenções que permitem a comunicação. Podemos compará-las. Existe uma diferença crucial que distingue a escrita e a imagem. Na escrita o código precisa ser conhecido, decifrado, dominado. Precisamos saber ler e escrever numa língua para que o conteúdo possa ser compreendido. Já no caso do cinema, da imagem em movimento, a compreensão está ao alcance de todas as pessoas – ou seja, é uma linguagem universal. Embora tenhamos convenções de composição da imagem que são culturais, históricas e geográficas, o significado da imagem de um ser humano é compreendido imediatamente.
Por que gostamos tanto de narrativas? Somos, nas palavras da escritora Nancy Huston, uma espécie fabuladora. Nossa vida ganha sentido pelos relatos que fazemos – é a linguagem que ordena a experiência, que nos leva a formular os sentidos da vida. “O sentido é a nossa droga pesada”, somos viciados em buscar significados, afirma a autora. Fabular é uma necessidade humana que interliga todas as experiências. A ficção surge de nossa capacidade de imaginar. Imaginação. Onde está, dentro de nós? A ciência não descobriu, mas sem imaginação a vida, apenas real, seria insuportável. A imaginação é um vasto mundo de possibilidades: infinito, insaciável, em que somos os protagonistas, atores principais de cenas, de tramas, de sensações, etc. Na imaginação não temos interdição – podemos tudo. Os limites são impostos na realidade. Nos relatos estão nossos valores e nossa percepção do mundo. A vida é confusa e incoerente, somos assaltados o tempo todo por estímulos diversos. Uma história põe ordem na desordem da vida: faz uma seleção, ordena e reconstrói a realidade que assim ganha sentido.
Toda narrativa é uma disposição de acontecimentos nas dimensões do espaço e do tempo. São as condições necessárias para o conhecimento, inatas, trazidas desde o nascimento, que nos permitem processar a experiência humana a partir do aqui (espaço) e do agora (tempo) onde nos encontramos. Narrativas articulam dois tipos de conteúdo: os objetivos, fornecidos pela realidade concreta, dos fatos verificáveis; e os subjetivos processados na imaginação, os estados emocionais e sensíveis da mente reflexiva. Narrativas podem ser realistas ou fantásticas, rememorar o passado ou projetar o futuro, descrever o mundo objetiva ou expressar a subjetividade. O mistério da arte é que nem sempre há justificativa para aquilo que escritores ou cineastas criam. No entanto, aquilo que expressam com sua arte pode tornar-se importante.
Diferenças de linguagem
A literatura conta. O estado de espírito de um personagem é descrito com palavras. A palavra é a matéria com a qual o escritor cria metáforas, substantiva, adjetiva e cria um mundo para o leitor. O cinema mostra. Um estado de espírito é apresentado na forma de ações, gestos, atos, expressões do rosto. Recorrer ao diálogo é empobrecer os recursos da imagem. Na literatura pode ser indiferente dizer se o dia está bonito ou se chove. No cinema, se o personagem está na rua, é inevitável mostrar como está o dia, se a rua está vazia ou pessoas caminham por ela. Ações como pensar, lembrar, esquecer são difíceis de expressar no cinema. Por isso a literatura do “fluxo de consciência” é um grande desafio de adaptação.
O cinema manipula cinco materiais expressivos, agrupados por Francesco Casetti e Federico di Chio em Como analizar un film: 1. códigos de imagem (planos, ângulos da câmera, iluminação, fotografia, etc); 2. códigos sonoros (diálogos, sons do ambiente, música, silêncio); 3. códigos gráficos (conteúdos escritos: intertítulos, créditos, legendas, informações dentro da imagem); 4. códigos artísticos (incorporados do teatro, da pintura, da literatura, etc) e 5. códigos culturais (convenções sociais e culturais, símbolos). Para um início literário como o de A metamorfose, de Franz Kafka – “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto” – o cinema deve fazer escolhas. A cama é de metal ou de madeira? Como é o quarto? Como mostrar a transformação de Gregor Samsa em inseto? Qual a forma do inseto? É parecido com uma barata ou com uma mosca? São questões de ordem artística e estética, mas também de ordem econômica.
A linguagem do cinema começou com a montagem, o domínio da fragmentação e reconstituição do tempo e do espaço. No início, o cinema apenas mostrava os acontecimentos, inspirado pelo teatro, em que a encenação se desenvolve diante do público. Mas logo abandonou essa fonte e tomou a literatura como referência para estruturar sua linguagem. O cineasta americano David Ward Griffith inspirou-se nos romances de folhetim escritos por Charles Dickens para aprimorar a narratividade no cinema. Os ganchos narrativos, a suspensão dos acontecimentos e a visualidade da literatura de Dickens serviram de modelo para as experimentações de Griffith que culminaram no longa-metragem O nascimento de uma nação (1914), um filme envolvente com mais de duas horas de duração.
Outro momento histórico de aproximação do cinema com a literatura ocorreu na França, depois da Segunda Guerra. Dentro da tradição literária e cultural dos franceses, em torno da cinefilia capitalizada pela revista Cahiers du cinema, o cineasta passa a ser visto como um autor, um artista que cria no ambiente adverso da indústria cinematográfica. Como valorizar o diretor dentro do sistema industrial? Comparando-o ao escritor. O cineasta e escritor francês Alexandre Astruc cunhou em 1948 a expressão cámera-stylo (câmera caneta) que se tornou famosa pela ideia de “escrever o filme com a câmera”, numa equivalência entre cinema e literatura.
Acontece que as diferenças no processo de criação são imensas. Enquanto o livro é obra de um autor que controla tudo – um solitário na criação – o filme é resultado de um trabalho de equipe coordenada pelo diretor. Processo, aliás, que deve ser aberto ao improviso, pois nem tudo é controlável. Acasos de filmagem, acidentes incorporados ao longo do percurso, resultam no que se vê na tela. Uma questão é crucial: quantas e qual o limite das concessões que um diretor aceita fazer para preservar uma ideia original ou melhorar a ideia inicial? Um filme é como um sonho, por isso nos fascina e nos absorve para os mundos que materializa. Tudo é possível nos sonhos. No cinema, os mundos mais fantásticos podem ser criados e tudo deve ser posto em termos de imagem – todas as sensações, todas as emoções e ideias devem ser postas visualmente.
O roteiro entre o livro e o filme
Todo filme começa literário: pelo roteiro, que é a planificação do que será filmado. Pode ser original, adaptado de livro, peça de teatro, de conto, inspirado em notícia de jornal ou episódio pessoal. Em qualquer circunstância, o roteiro é a promessa de um filme, um vir a ser. O roteirista Jean Claude Carrière afirma em A linguagem secreta do cinema: “Escrever para cinema me parece o tipo de escrita mais difícil de todos, porque exige a convergência de qualidades raramente reunidas.” Tendo trabalhado com alguns dos grandes cineastas do cinema, principalmente o espanhol Luis Buñuel, ele lista essas qualidades: talento e invenção, um mínimo de capacidade literária, sensibilidade para criar diálogos, bagagem técnica (saber como os filmes são feitos) e humildade. O roteiro está destinado a desaparecer no filme pronto e quem brilha é o diretor.
O problema, então, é como fazer a transposição? Como sair da escrita para a imagética? Como transmutar papel em filme? Um roteirista precisa descrever seu personagem de fora para dentro: como é visto. Coisas que parecem ótimas no papel, simplesmente não funcionam vistas na tela, podem parecer falsas, forçadas. Decisões devem ser tomadas no instante da filmagem e é do diretor a responsabilidade de modificar ou eliminar uma cena, ajustar um plano, etc. A filmagem é o momento de verdade do roteiro que já sofreu uma série de ajustes, o primeiro deles no confronto com as possibilidades econômicas de sua execução, embate que se dá, via de regra, com o produtor.
Influenciada pelo cinema a literatura se tornou menos descritiva, mais voltada para a expressão da consciência, da intimidade dos personagens. Mas não significa que um escritor possa escrever para o cinema, pois como enfatiza Carrière: “após filmado, o destino de um roteiro é a cesta de lixo”. São muitos os casos que ilustram as relações complexas, às vezes difíceis e tensas entre literatura e cinema. Exemplo são as tentativas frustradas de adaptação dos mundos interiores sutis e complexos criados pelo escritor Vladimir Nabokov. O próprio cineasta Stanley Kubrick considerou sua adaptou de Lolita (1962) um fracasso. O filme, dizia, tinha resultado numa “tímida tradução de um romance cuja glória era sua voz narrativa singular”. Nabokov, que elogiava o filme em público – de fato é um grande filme, não o considerava medíocre – dizia em particular: “não é o que escrevi”. O curioso é que Nabokov, convidado por Kubrick para escrever o roteiro, entregou um manuscrito de 400 páginas que não foi usado.
Então, entre o livro e o filme, existe o roteiro. A adaptação de uma obra literária pelo cinema pode adotar dois caminhos: obediência e respeito ao texto original ou recriação. No primeiro caso, o conteúdo da obra literária é passado ao espectador, mas a linguagem audiovisual é apenas complemento do texto. O resultado pode ser uma leitura pobre, mas nem sempre. Um exemplo bem-sucedido é a adaptação que Leon Hirszman fez de São Bernardo, de Graciliano Ramos. O cineasta não escreveu um roteiro, o livro serviu como fonte de trabalho para a equipe.
Algumas das adaptações mais estimulantes são verdadeiras recriações que resultam em obras autônomas, marcadas pelo gênio criativo do diretor. Francis Ford Coppola, que já havia filmado O poderoso chefão (1972) considerado muito melhor do que o livro de Mário Puzzo, fez de Apocalypse now (1979) uma reescrita de O coração das trevas, de Joseph Conrad (1902). A partir do roteiro de John Milius, o cineasta transpôs o Congo do século 19, e seu contexto colonial, para a guerra do Vietnã dos anos 60. Em Blow up, depois daquele beijo (1966) Michelangelo Antonioni acompanha o envolvimento acidental de um fotógrafo num crime. Escreveu o roteiro com Tonino Guerra a partir do conto Las babas del diablo, de Julio Cortázar. O resultado foi um filme moderno, uma discussão sobre o que é a realidade.
O mestre do suspense Alfred Hitchcock sempre usou a literatura como fonte para os filmes, mas dizia, com humor perverso, que os livros ruins, banais, eram os melhores para o cinema. A obra-prima literária é um desafio, prenúncio de fracasso.
A filmografia do cineasta italiano Luchino Visconti, em sua maioria adaptada da literatura, desmente tal crença. Estreou com o policial noir de James M. Cain The postman always rings twice, que resultou no filme Obsessão (1943) e tornou-se precursor da estética neorrealista. Visconti tinha o sonho de adaptar Marcel Proust – os grandes da literatura eram para ele um estímulo e um desafio. Não conseguiu realizar o projeto, mas deixou duas obras-primas equivalentes à grandeza dos originais literários. O Leopardo (1963) recria com perfeição a decadência da aristocracia siciliana no processo de unificação da Itália no século 19. Está no mesmo nível do extraordinário romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, com o qual Visconti tinha em comum a ascendência aristocrática. Morte em Veneza (1971) compõe em imagens a discussão sobre a arte e o artista frente a criação e a beleza, materializando aquilo que em Thomas Mann é espanto e reflexão interior.
São múltiplos os diálogos entre o cinema e a literatura. Por vezes, a maior fidelidade equivale a destruir no filme tudo o que é literário. O melhor reconhecimento do gesto de subtrair para ser fiel foi feito pelo cineasta italiano Bernardo Bertolucci, que escreveu poesia e romance antes de decidir-se pelo cinema. No belíssimo O céu que nos protege (1990), eliminou tudo o que havia de literário para ficar só com a história e, assim, chegar mais perto dos personagens. O livro foi o primeiro romance do escritor americano Paul Bowles, lançado em 1954, no qual ficcionalizou a história que ele próprio viveu com a mulher, a dramaturga Jane Auer. Em 1947 eles, ambos nova-iorquinos, decidem viver no Marrocos.
Ao filmar o romance, Bertolucci chamou Paul Bowles. O escritor aparece no início do filme, quando o casal e um amigo desembarcam no porto em Tânger e entram num bar. Eles são interpretados pelos atores Debra Winger e Jonh Malkovich e sua movimentação é observada pela figura silenciosa do escritor no fundo do ambiente. Como num jogo de espelhos, o criador vê materializados os personagens ficcionais que construiu a partir da realidade por ele próprio vivida. Traz no rosto uma expressão quieta e sofrida, resmunga algo sobre aquelas figuras das quais conhece as motivações profundas. O filme, um dos grandes momentos de Bertolucci, é o mais belo reconhecimento que o cinema poderia fazer à dívida que tem com a literatura.
Publicado na revista Arte Sesc – Cultura por Toda Parte – nº 22 – Segundo Semestre 2017