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Cinema
Em Porto Alegre
Conversa com Hélio Nascimento
20/04/2020
Nesses dias de isolamento, por causa do Covid-19, bons filmes e a conversa com amigos são um bálsamo. Assisto obras-primas da história do cinema e preencho lacunas com esse maravilhoso mundo de acesso pela internet. São filmes russos, holandeses e de outros países, os mesmos que os cinéfilos porto-alegrenses assistiam nos anos 60, nas mostras realizadas no Salão de Atos da UFRGS com apoio do Clube de Cinema de Porto Alegre. Sobre isso conversei com meu querido mestre e amigo Hélio Nascimento, que sempre fala com entusiasmo daqueles anos de cinefilia vibrante, quando ele iniciou sua trajetória profissional. Me fala de Satyajit Ray, o genial cineasta indiano ao qual fui apresentada justamente por Hélio, quando era ainda estudante, na Rádio da Universidade onde nos conhecemos – Hélio produzia e apresentava o programa Cinema de Segunda a Segunda e eu era uma estagiária dando os primeiros passos no jornalismo. Também nos encontrávamos nas sessões do Clube de Cinema – eu muito tímida – lá no início dos anos 80. Sempre que tem oportunidade, Hélio fala da trilogia de Ray, do personagem Apu e dos filmes Pather Panchali, Aparajito e Apur Sansar. Na impossibilidade de ver filmes novos, Hélio tem relembrado essas grandes obras nas páginas do Jornal do Comércio de Porto Alegre, onde mantém coluna semanal de crítica, com certeza a mais longeva do Brasil, publicada desde 1961.
Além dos grandes filmes sobre os quais nos fala com entusiasmo, Hélio também conta histórias. Essa faz parte da memória do cinema gaúcho: é sobre o filme perdido de José Picoral que mostrava a cidade de Torres. Quando começou a trabalhar no Jornal do Comércio Hélio conheceu Picoral, que tinha alcançado notável reconhecimento com sua obra realizada em 1927 para divulgar a praia e o balneário onde seu pai José Antônio Picoral havia fundado, em 1915, o Balneário Picoral, tornando-se pioneiro do turismo. O documentário é considerado o filme de publicidade turística mais antigo do estado. Hélio nos conta que o referido filme havia sido exibido a Paulo Emílio Salles Gomes, mentor da Cinemateca Brasileira que vinha com frequência para atividades cinematográficas em Porto Alegre. O crítico paulista ficou entusiasmadíssimo porque o filme de Picoral tinha o pioneirismo de cenas filmadas em alto-mar, mostrando pescadores em suas lides. Paulo Emílio assegurou que eram imagens anteriores às inovações introduzidas pela escola documentarista inglesa fundada por John Grierson e levou a cópia para depósito na Cinemateca Brasileira. O nitrato do qual eram feitas as películas entrava com facilidade em combustão com o aumento do calor e num dos incêndios da Cinemateca o filme foi destruído.
Foi uma lástima, pois não havia mais negativo de Torres, esse já tinha se perdido na Alemanha, nos escombros da Segunda Guerra. Sendo neto de imigrante alemão que havia chegado ao estado no início do século, José Antônio Picoral Júnior teve a oportunidade de visitar a terra dos ancestrais a convite da embaixada alemã. Foi uma viagem extraordinária que incluiu um encontro com Hitler, apresentação de seu filme e depósito em acervo fílmico posteriormente destruído nos bombardeios da guerra. Picoral contou essas histórias ao jovem crítico e lhe deu o cartaz original do filme do qual nada mais restava. Hélio depositou esse precioso documento recentemente na Cinemateca Capitólio.
Com ansiosa expectativa, Hélio me pergunta: será que existe alguma cópia do filme? Ele gostaria de assistir – e eu também! Mas Glênio Póvoas nos garante: foi mesmo perdido. Glênio é autor da pesquisa mais importante sobre os primórdios do cinema do Rio Grande do Sul, escreveu Histórias do cinema gaúcho: propostas de indexação 1904-1954, em que se destaca a produtora Leopoldis, de Ítalo Majeroni, que atravessa 60 anos de cinema no estado. A história do cinema gaúcho, pela ótica da produção da Leopoldis, é contínua, regular e sistemática e elo para todas as outras histórias. No período de sua pesquisa Glênio indexou 587 títulos, realizados em 35 mm e 16 mm, e passou pelas informações relativas ao filme Torres, do qual restam apenas as notícias nos jornais e histórias que nos contam. Esse e outros acontecimentos do cinema feito no Rio Grande do Sul estão na pesquisa de Glênio, uma tese de doutorado defendida na PUCRS, em cuja biblioteca pode ser consultada.
A conversa com Hélio se desdobrou na alegria do encontro e me levou a reproduzir texto que escrevi em 2002, no segundo número da revista Teorema – Crítica de Cinema, por ocasião do lançamento do livro O Reino da imagem, uma antologia de suas críticas editada pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da SMC, que segue.
Hélio Nascimento e a crítica de cinema no Rio Grande do Sul
A coleção “Escritos de Cinema” tem revelado a densidade e a consistência de uma verdadeira e autônoma cultura cinematográfica no Rio Grande do Sul. A série de livros editados pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal da Cultura iniciou em 1996 reunindo em Cadernos de cinema de P. F. Gastal textos publicados pelo pioneiro da crítica rio-grandense espalhados em diversos jornais. A recuperação e documentação do pensamento crítico regional seguiu com Jacob Koutzii, que assinava com o pseudônimo Plínio Moraes, passou por Goida e agora chega em Hélio Nascimento. O reino da imagem é o sétimo volume da série e em 496 páginas reúne a extensa produção do crítico considerado “uma figura do iluminismo” pelo amigo e contemporâneo Jefferson Barros.
A seleção dos textos foi realizada pelo próprio Hélio Nascimento, abarcando um período que vai de 1962 a 1991, todos publicados no Jornal do Comércio. Hélio é um caso raro de fidelidade a uma função e um veículo, difícil de encontrar num mercado que se caracteriza pela instabilidade. Ingressou no Jornal do Comércio em 1961, onde manteve-se como crítico, assumindo no decorrer do tempo também as funções de editor do setor de cultura até 1991, quando se aposentou. Não ficou muito tempo longe do exercício permanente de analisar filmes, reassumindo a função em 1994, no mesmo JC que publica sua coluna todas as sextas-feiras.
Para O reino da imagem Hélio adotou um método de seleção que reflete a base do pensamento cinematográfico da geração à qual pertence. Organizou os textos a partir dos diretores, 64 no total, que comparecem no livro em ordem alfabética, iniciando com o norte-americano Woody Allen e finalizando com o italiano Valerio Zurlini. Hélio publicou suas primeiras críticas no início da década de 1960, momento exato em que o assunto “cinema de autor” alargava as fronteiras para além da França e das páginas da Cahiers du Cinéma. Ao mesmo tempo, os rapazes rebeldes que proclamavam o cineasta como autor e criador dos filmes estavam, eles próprios, lançando-se como diretores através da Nouvelle Vague. Tudo isto foi vivido com entusiasmo em Porto Alegre, onde uma geração de cinéfilos fazia a transição para a crítica e buscava marcar um espaço em relação às gerações anteriores, representadas especialmente na figura de P. F. Gastal. Do grupo jovem, integrado por Hélio, faziam parte Hiron Goidanich, o Goida, que começou escrevendo na Última Hora; Jefferson Barros, que tinha apenas 20 anos quando estreou como crítico no Diário de Notícias e logo passou para o Correio do Povo; Enéas de Souza, que escrevia na Revista do Globo e em 1965 publicou o livro Trajetórias do cinema moderno; e um pouco depois, em 1966, Luis Carlos Merten, que iniciou escrevendo no Diário de Notícias.
Cineclubismo
Na medida em que avançam as pesquisas acadêmicas sobre a história cultural em nosso país, cada vez mais os núcleos regionais aparecem em sua peculiaridade e distinção em relação ao eixo predominante Rio de Janeiro-São Paulo. No caso de Porto Alegre, o campo do cinema na década de 1960 se caracteriza pela cinefilia e a aproximação com a filosofia. Havia o Clube de Cinema – em funcionamento até hoje – e que, naquele período dava acesso, através de mostras e festivais, a cinematografias estrangeiras que não eram contempladas pelo circuito comercial. Mais importante ainda, do ponto de vista de uma atividade incomum que buscava legitimidade social, o cineclubismo – e a cinefilia a ele associada – proporcionava aos seus integrantes um sentimento de pertencimento, de fazer parte de uma comunidade cuja identidade se demarcava pela adesão apaixonada ao cinema.
Faz parte da formação dos críticos da geração de Hélio, nascido em Porto Alegre em 1936, a passagem pelo cineclubismo. Além de frequentar o CCPA, Hélio ocupou por mais de uma ocasião o cargo de programador na década de 60. O principal patrimônio na formação de um crítico é a qualidade de filmes que conseguiu assistir ao longo de sua vida, que resultam num conhecimento cinematográfico que o habilita a analisar não apenas o filme em si, mas em relação à filmografia de seus realizadores e em relação ao restante da produção do passado e do presente. Com uma vasta cultura cinematográfica, iniciada nas matinês da infância, os textos de Hélio deleitam o leitor com informações e relações que o crítico estabelece, situando sempre o filme no conjunto da obra do diretor.
Junto com o cineclubismo, os anos de formação de sua geração incluíram a influência do pensamento do crítico francês André Bazin e a filosofia. Na primeira metade da década de 60 a Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul era um centro de convergência integrador de diversas áreas do conhecimento. A filosofia possuía uma projeção na sociedade que se dava pela presença e ação efetiva de filósofos no meio cultural, especialmente Gerd Bornheim. Além de ver filmes no Clube de Cinema e participar ativamente do movimento teatral, Bornheim tinha artigos publicados sistematicamente nos jornais e possuía discípulos entre os cinéfilos.
Enéas chegou à crítica depois de cursar filosofia. Trouxe a disciplina exigida pela reflexão filosófica e a necessidade de se estabelecer métodos para empreender uma análise. As ideias que então eram discutidas, com entusiasmo e em tom acalorado, após as sessões noturnas nas salas de cinema pelas ruas do centro de Porto Alegre, sustentam ainda hoje o método de crítica de quem viveu aqueles anos de formação. Tomar o cinema como um meio de conhecimento do homem e do mundo e analisar um filme situando o personagem no contexto do cenário concebido para o desenrolar dos acontecimentos tem sido um guia seguro para Hélio Nascimento, que não vê sentido nas análises que se perdem em questões periféricas como a avaliação da qualidade da interpretação dos atores. A construção do personagem é a base deste pensamento cinematográfico que toma o diretor a partir da ideia do autor, do criador que vence as contingências de um produto industrial e insere sua visão particular de mundo.
Emoção
Uma das questões que se coloca para o crítico de cinema diário, que trabalha nos veículos de comunicação, é como enfrentar o desafio de produzir uma reflexão consistente sobre um filme em relação ao qual não é possível tomar distância. A pressão do tempo se impõe e, não raro, o crítico sai do cinema e vai para o computador, como antes ia para a máquina de escrever, a fim de redigir seu comentário sob o impacto da emoção de uma experiência recém vivida. Por isso, ao se considerar a atividade do crítico diário, é importante localizar esta função dentro do sistema cultural do qual igualmente fazem parte o cineasta e o público. A reação emocionada é parte integrante do trabalho do crítico cinematográfico e negar este aspecto em benefício de uma suposta objetividade é um equívoco.
A imagem escolhida para ilustrar a capa de O reino da imagem remete a um dos cineastas preferidos de Hélio Nascimento. Sempre foram entusiasmados os seus textos sobre o sueco Ingmar Bergman e sobre o filme Gritos e sussuros (Viskningar och rop, 1973), estando incluídas no livro as três críticas publicadas entre dezembro de 1974 e janeiro de 1975, quando o filme foi exibido em Porto Alegre. Nelas se revelam a prática constante do crítico de localizar em cada filme os elementos que indicam a presença das ideias principais do diretor, a “matriz” como enunciavam os franceses. Mais do que isso, o enquadramento escolhido evoca a Pietá, reafirmando a inscrição do cinema no sistema das artes.
Para os grandes diretores, para os filmes que o entusiasmavam, Hélio abria espaço. Grande, por exemplo, é Stanley Kubrick, cuja grandeza o crítico procura demonstrar argumentando a partir de uma cultura ampla que extrapola os limites do cinema. Em defesa da condição de obra-prima para 2001: Uma odisseia no espaço (2001: A space odyssey, 1968) vale-se da Dialética da natureza de Engels num primeiro texto; do significado da música O Danúbio Azul de Johann Strauss Filho numa segunda crítica e se detém especificamente sobre o tema da máquina no terceiro texto.
Em relação ao cinema brasileiro O reino da imagem é testemunha do alinhamento da crítica gaúcha, cuja resistência a Glauber Rocha é notória e assumida. O discurso alegórico dos filmes do cineasta baiano encontram pouca ressonância no ambiente cultural porto-alegrense , mesmo entre realizadores. O positivismo que desenvolveu-se no Rio Grande do Sul de modo particular, se manifesta no campo da crítica na forma de uma visão pragmática. As preferências em relação ao cinema brasileiro são contaminadas por uma preocupação com a viabilidade de mercado dos filmes, levando muitos críticos a preferir, por exemplo, do mesmo Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos.
A alternativa, neste caso, é pela narrativa clássica e o realismo, que o cinema de Glauber questiona, confronta, rompe, distanciando-se cada vez mais na medida em que avança sua obra fílmica. Só há um texto sobre Glauber no livro, uma crítica de Deus e o diabo na terra do sul (1963), publicada em 1981, referente a um ciclo realizado pelo cinema Bristol por ocasião da morte do cineasta. Distanciado no tempo, o crítico reconhece o gênio do artista, o que não implica na aceitação de sua obra, de cuja filmografia destaca apenas, justamente, Deus e o diabo. É diferente, por exemplo, a posição quanto a Walter Hugo Khouri ou Roberto Farias. Uma questão principal é que o cinema seja concebido como espetáculo capaz de se comunicar com o maior número possível de pessoas.
Da geração de críticos porto-alegrenses surgidos nos anos 60, Hélio Nascimento constituiu, quem sabe, a obra mais densa, por isso a importância deste livro que dá acesso ao conjunto de sua produção. Nele revela-se não apenas um método de crítica, mas igualmente a recorrência a temas que são pertinentes ao crítico e dizem respeito à reflexão sobre o comportamento humano. Com uma vasta cultura, um texto ponderado e inteligente, Hélio tem ensinado gerações de leitores não apenas a ver melhor os filmes, mas a conhecer a vida através dos filmes.
Revista Teorema – Crítica de Cinema – n. 2, Porto Alegre, dezembro de 2002.
Crédito foto da postagem: Sarita Reed – 2015