-
Artigos
Em memória de meu pai
23/05/2023
Essa elegia (elogio) honra Luiz Lunardelli, um homem antigo, dos fundões do Rio Grande do Sul, pai que me deu vida mais de uma vez, inclusive ao morrer, faz um ano, em 24 de maio de 2022.
É com ele minha lembrança mais antiga, de uma noite na espaçosa casa de madeira onde vivi parte da infância, somente eu, o pai e a mãe – ainda não havia meu irmão Flávio. Eu devia ter uns três anos ou menos. Memória inaugural, antes disso não sei de mim. É uma noite feliz em que brinco de cavalinho nas pernas cruzadas do pai enquanto a mãe separa grãos de feijão para o almoço do dia seguinte: nós estamos ao lado do fogão de lenha que aquece a cozinha e ela na mesa onde o lampião espalha uma luz suave pelo ambiente. Nós rimos, eu e o pai. É uma boa lembrança de anos difíceis para eles. O lugar era isolado, chamava-se Quebra-Dente, um distrito rural do município de Soledade. Sair da cidade de Guaporé – pequena mas urbanizada – para se aventurar no trabalho da roça, num lugar ermo, mas próprio, foi a maior e mais desafiadora aventura na vida deles, recém-casados, com um bebê de colo. A revelação do medo que sentiu foi uma das história que me contou nos meses em que passamos juntos, inicialmente no Hospital Divina Providência, depois no São Lucas da PUC, um dia depois do outro, esperando voltar para casa.
Luiz foi o primeiro dos nove filhos do Fiorello Lunardelli e da Tereza Parisotto e para sempre carregou a responsabilidade de ser o mais velho – tinha que cuidar dos irmãos quando iam, ainda crianças, capinar, roçar ou semear a terra onde passou sua infância – hoje município de Anta Gorda, antigamente distrito de Encantado. A casa onde viveu está lá, mas eu só conheci agora, pois nunca me ocorreu ir também num programa que parecia ser apenas dos meus pais: todos os anos no verão, época dos figos maduros, viajavam até Anta Gorda para jornadas de visita aos parentes, de fazer chimia e trazer uva, queijo, salame, banha e tudo mais que a gente do interior tem certeza que é melhor do que a comida da cidade. Era quando o pai ficava mais feliz. Com a justificativa de ajudar a parentada aproveitava os dias para arar, plantar e mexer na terra num reencontro com sua alma telúrica que se transformava em histórias contadas com alegria.
Meus pais saíram de Quebra-Dente em 1969, chegaram em Porto Alegre em janeiro. Gosto de pensar que foi por minha causa: ia fazer sete anos, era chegada a época de estudar. Fomos morar na zona sul onde meu tio Renor já se instalara; abriram um mercadinho com açougue – negócio comum entre os gringos vindos do campo. Com o tempo todos da família se mudaram para a capital. Naqueles primeiros meses, enquanto meu pai se virava com as incertezas e a insegurança de ser um caipira na cidade grande, eu iniciava no colégio Mãe de Deus, no bairro Tristeza. Das grotas de um lugar isolado sem luz elétrica caí no ambiente fervilhante de uma escola cheia de outras crianças, um choque (com inevitável trauma) que criou a condição de possibilidades que eu jamais teria se ficássemos onde estávamos.
O pai tinha confiança que apenas as freiras sabiam ensinar, pois só com elas, depois de sete reprovações numa precária escola rural, ele conseguiu aprender a ler, escrever e fazer contas. Era uma das histórias que repetia no hospital, sem ressentimentos, com um mal disfarçado orgulho de ter se feito na vida com o trabalho firme de seu corpo e disposição autodidata de ter aprendido observando: foi boiadeiro, açougueiro, colono, assador, dono de churrascaria, caminhoneiro e faz-tudo-de-obra. Repetia suas façanhas para quem chegasse com medicação, para fazer mais exames ou movimentar o corpo que ia perdendo as forças. Estoico, aceitava. Sempre aceitou: gostava de trabalhar, dizia que era bom. Em realidade, não relaxava, acho que nem sabia desfrutar horas que fossem ociosas e abandonas à falta de objetivos. Tinha o nervosismo de estar sempre em atividade e quando já não podia com o trabalho pesado, levava seu corpo com lentidão até a horta da igreja Santa Flora, que cuidou com zelo até às vésperas de ir para o hospital. Repetia orgulhoso como havia resolvido o problema das formigas, ou das abelhas, ou dos insetos que ameaçavam a parreira, os pés de alface, as couves e os radiches que eu gracejava serem melhores pois abençoados pelo terreno santo.
Mas o pai tinha seus prazeres – não tenho dúvidas – era católico dedicado, adorava ir na missa, se dividia entre as paróquias das redondezas: Santa Flora, Santa Rita, Santa Luzia e Nossa Senhora das Graças, contente com a amizade dos padres e envolvido com tarefas nas igrejas. E dançava! Curioso é que a disposição para os bailes retornou quando nasceu Felipe, primeiro neto, em 1998. Criança renova as famílias! Meus pais integraram-se a um grupo de danças de salão – gauchescas, óbvio! Pilchados à moda rodaram dezenas de bailes que restituíam aquele no qual se conheceram, em Guaporé. Imagino a primeira troca de olhares entre o Luiz e a Maria de Lourdes, atraídos pela juventude e beleza que possuíam, movimentando seus corpos no salão, inquietos e contentes um nos braços do outro. Passaram 62 anos juntos. Ninguém venha me dizer que longos casamentos são felizes. Meus pais tiveram suas dificuldades, frustrações de um longo convívio e da mudança de valores que altera a vida e fustiga novos desejos. Porém, permaneceram firmes pois apesar de terem saído do interior, o interior nunca saiu deles. Se urbanizaram mas não se modernizaram. A mãe seguiu fazendo em casa o pão e a massa de todos os dias (comprada, nem pensar!) e eu sempre tive confiança de aparecer para o almoço sem avisar porque comida haveria.
Moldado na rudeza da vida da colônia meu pai era econômico na demonstração de afeto: fui criada sem muita conversa e na adolescência fiz as cobranças que todo filho faz naquele momento terrível de tornar-se adulto e descobrir-se por conta própria. Porém, sempre soube em meu coração que o Luiz me amava e do jeito seco dele me transmitiu os valores essenciais para que eu construísse uma vida com senso de intrasferível responsabilidade, autonomia e liberdade.
Antes que aquele ano de 1969 terminasse o pai comprou um aparelho de televisão nas lojas Hermes Macedo, que pagou em mais de vinte parcelas. Era a grande novidade da época. Aquela caixinha mágica capturou minha imaginação, foi um refúgio e aplacou a angústia de lidar com uma realidade difícil para a criança tímida que eu era. Anos depois, quando cursava o mestrado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ao contar como tinha surgido minha paixão pelo cinema, a professora Maria Rita Galvão vislumbrou o fenômeno social e sugeriu que em lugar de estudar os filmes dos Trapalhões eu investigasse a partir da minha experiência os impactos culturais da expansão da televisão num momento de recrudescimento da ditadura no Brasil. Preferi manter minhas intenções, porém compreendi de maneira pessoal e profunda como o eu que somos resulta das circunstâncias e dos contextos em que se vive. Embora meu pai nunca tenha ido a uma sala de cinema e nem se importasse com filmes, devo às escolhas dele o início de uma paixão que tive a sorte de transformar numa profissão que melhor não poderia haver: a de olhar e estudar filmes, que seguem me fascinando!
Sempre me senti um tanto dividida entre a menina interiorana que restou em mim – tímida, um pouco insegura e sensível à melancolia de um mundo onde o tempo parece sempre igual – e outra curiosa, empolgada com a cidade, interessada nas novidades. Por isso escolhi ser jornalista e, quem sabe, tenho necessidade de escrever. O pai nasceu em 1936 e no dia que fez 25 anos eu fui seu presente de aniversário, também tínhamos em comum o dia 20 de fevereiro. Nasci moderna no hospital de Guaporé. Mas quase morri quando uma inflamação na glote obstruiu minha garganta. Isso foi depois, quando eles moravam naquele fim-de-mundo sozinhos. O pai me pegou no colo, buscou um vizinho e juntos caminharam mais de 20 km de madrugada até a casa do farmacêutico, guiados apenas pelas luzes das estrelas e da lua. Foi com alívio que comecei a respirar assim que recebi medicação. Quando penso nessa história da qual não tenho lembrança me comove o medo que meus pais sentiram.
A vida no corpo do pai foi indo embora depois de receber a benção do padre Ronaldo, da Paróquia Sagrado Coração de Jesus. Foi de madrugada e eu estava com ele, senti em minha mão seu coração parando. Não há qualquer transitividade na morte: outra lição que Luiz Lunardelli, um homem que amei, que admiro e do qual sinto saudades me ensinou. Conto a história dele com orgulho de ser a sua filha.