-
Artigos
Cinema
Encontro com Werner Herzog em Porto Alegre
29/12/2019
A voz de Enrico Caruso ecoando pela selva amazônica, saída de um velho gramofone instalado no convés do barco que o obstinado Fitzcarraldo conduz pelo rio Negro, é uma imagem da minha coleção íntima de cenas inesquecíveis do cinema. É uma imagem síntese. Nela se expressa uma visão do ser humano, nossa condição ao mesmo tempo maldita e abençoada de buscar algo que está sempre além, uma insatisfação permanente que nos projeta para o futuro. Admirava Werner Herzog por esse filme dos anos 80, por sua estética, até que lançou O homem urso (2005) quando também passei a admirá-lo por sua ética. Em um dos momentos mais dramáticos o diretor recusa ao espectador o acesso ao momento da morte de Timothy Treadwell pelos ursos pardos que ele tanto amava. Há limite para o nosso voyeurismo contemporâneo. A morte é imagem obscena, dizia Andre Bazin, momento privado, instante irrepetível e por isso sagrado. A morte nunca é banal. O gesto moral de Herzog é o ponto de inflexão do cinema que pratica, uma obra aberta ao encontro com o outro nas mais variadas formas da experiência humana.
Encontrar o diretor, que veio a Porto Alegre para o Fronteiras do Pensamento 2019, foi um desses momentos ímpares da vida. Há em sua presença uma doçura inesperada, contrária à imagem que projeta em entrevistas e nos filmes, do homem um tanto carrancudo, corpulento, que interpela os entrevistados com firmeza, numa voz grave e profunda. Herzog tem um estilo que impregna a filmografia de mais de 70 títulos entre curtas, médias e longas, para cinema e televisão, filmados ao ritmo de mais de um por ano. Há um certo espírito jornalístico nessa rapidez, Herzog procura o calor dos acontecimentos. Mas seu olhar está longe de ser o de repórter; é do criador, daqueles raros cineastas cujo cinema é também pensamento.
Nascido na Baviera em 1942, chamou a atenção da crítica com seu primeiro longa Sinais de vida, em 1967. Foi durante essa filmagem que realizou o curta Últimas palavras (1968), em apenas três dias. Soube que numa ilha grega em evacuação um velho se recusava a partir. Herzog foi saber os seus motivos e já aqui se desenha um tema recorrente em sua obra: o que as pessoas fazem para dar sentido à vida? É um autor que explora formas fílmicas intercambiando documentário e ficção, experimentando abordagens sobre o tema dos limites do humano frente à natureza – a nossa própria e aquela da qual fazemos parte. Os obstinados são seus personagens preferidos, seja o alpinista Walter Steiner com seus saltos extraordinários (O grande êxtase do entalhador Steiner, 1974), o vulcanólogo Clive Openheimer que estuda perigosos vulcões com magma a céu aberto (Into the inferno, 2016) ou Dieter Dengler, o alemão fascinado por aviões que entra na força aérea americana para voar e é abatido na primeira missão na guerra do Vietnã. O mistério de sua sobrevivência ao campo de concentração vietcongue e a fuga pela selva inóspita do Camboja é um enigma que se desdobra no documentário O pequeno Dieter Dengler precisa voar (1997) e no filme de ficção O sobrevivente (2006), protagonizado por Christian Bale.
A vinda do diretor nos instigou a realizar uma mostra de seus filmes na Sala Redenção da Ufrgs, promovida pelo Departamento de Difusão Cultural e o Goethe-Institut, em parceria com a Werner Herzog Film GmbH. Além de falar no Fronteiras do Pensamento, o diretor aceitou o convite para um encontro com realizadores, críticos e público que frequenta o cinema universitário. Aconteceu em 23 de setembro e foi um encontro memorável, um dos grandes momentos cinematográficos de 2019.
Da pequena seleção de filmes, que pode ser consultada no site do DDC, rever Aguirre, a cólera dos deuses (1972), em cópia restaurada, foi uma experiência estética intensa. Já na primeira imagem, um longo plano sequência que abre ao espectador a cordilheira andina, percebe-se o cenário em que se descortinará a loucura do conquistador espanhol Don Lope de Aguirre. Comandante de uma expedição da coroa espanhola no século XVI ele busca o Eldorado, sendo esmagado pela ambição e destruído pela paisagem. Foi o primeiro filme que Herzog fez com Klaus Kinski, figura extravagante, um ator complicado que dirigiu em cinco filmes, incluindo o explorador de borracha Fitzcarraldo (1982), que decide construir uma ópera no meio da selva. O documentário Meu melhor inimigo (1999) é uma homenagem sincera e um exame crítico da relação conflituosa de amor e ódio que Herzog manteve com o ator, falecido em 1991.
O convite para fazer a curadoria da mostra foi uma justificativa para mergulhar na obra deste cineasta notável e ler seus livros. Ambos são diários. Caminhando no gelo (Paz e Terra, 1992) registra momentos do percurso de mil quilômetros que fez de Munique a Paris, em 1974, pelo restabelecimento de Lotte Eisner, hospitalizada na capital francesa em estado grave. Principal historiadora do cinema alemão e estudiosa do expressionismo, Lotte foi a primeira a reconhecer o talento da geração da qual Herzog faz parte, aquela que renovou o cinema na Alemanha no início dos anos 60. É um livro bonito que testemunha o profundo amor do cineasta pela amiga.
Conquista do inútil também tem a forma de diário, mas está longe de ser mero relato descritivo, traz, nas palavras de Herzog, “paisagens internas nascidas do delírio da selva”. É sobre a tumultuada realização de Fitzcarraldo, entre 1979 e 1981, filmado na amazônia peruana e em Manaus, processo tão desgastante que levou o diretor a quase desistir do cinema. Isso por causa da ousadia do projeto de recriar aquilo que poderia ser apenas encenado. Assim como o personagem, o cineasta fez um barco a vapor ser transportado sobre uma montanha, o que envolveu milhares de figurantes e um trabalho insano em locações muito difíceis. Pessoas morreram, o embate com a selva foi traumático e as anotações só foram retomadas após 24 anos. O livro foi publicado em 2004 e é excelente leitura para qualquer pessoa interessada em cinema. No relato se percebe a característica peculiar de Herzog, um cineasta com um grande senso prático que combina com um olhar agudo para as sutilezas da realidade, extraindo sentidos que vão muito além da superfície dos acontecimentos.