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Filosofia
Fundamentos da filosofia contemporânea
04/05/2018
As questões da filosofia contemporânea se apresentam já na segunda parte do século XIX, em decorrência de um pensamento que se caracteriza pela rejeição de explicações totalizantes. A ideia de diferença é fundamental a uma filosofia contemporânea, dado o pressuposto da impossibilidade de conhecermos tudo. Em todos os aspectos somos seres limitados, tema concernente à filosofia contemporânea.
O pensamento moderno inaugurado por René Descartes (1596-1650), no contexto da revolução científica do final do Renascimento, do Iluminismo e do desenvolvimento material daí decorrentes, encontra seu limite em Georg Hegel (1770-1831), último autor a formular um sistema filosófico. Depois dele, tanto Karl Marx (1818-1883) quanto Friedrich Nietzsche (1844-1900) abordam as transformações da sociedade. Marx critica em Hegel o modelo idealista e artificial da história; já Nietzsche, que foi um grande historiador das ideias, dá ênfase aos sistemas morais – do paganismo da antiguidade grega ao catolicismo cristão.
Na revisão da história instala-se o pensamento contemporâneo da diferença. Já não importam apenas os fatos, mas a interpretação que deles é feita. Nietzsche fez a genealogia da moral, Michel Foucault (1926-1984) fez uma arqueologia das ideias, buscou a história daqueles que não tinham história – os excluídos designados loucos; Sigmund Freud (1856-1939) buscou pelo método psicanalítico os fatos esquecidos no inconsciente que, sem temporalidade, pressionam o presente do sujeito na forma de sintoma.
O passado não é passado, está sempre em transformação diante de novas interpretações, à luz de novos conceitos formulados pela filosofia. Novos objetos teóricos – a mulher no caso de Simone De Beauvoir (1908-1986) e seu fundamental Segundo Sexo (1949) – produzem redefinições dos campos de atuação da filosofia e de temas invariáveis do pensamento filosófico: natureza, ser, uno/múltiplo, substância, sujeito e etc.
Novas metodologias e escolas surgem da distinção entre a Filosofia e as Ciências Exatas que ocorre no século XX. A filosofia ganha subdivisões, novos campos se estabelecem por inter-relações: Positivismo Lógico na Áustria dos anos 20; Logicismo na Inglaterra até anos 1920; Bergsonismo na França dos anos 1930; Fenomenologia, a partir de Edmund Husserl (1859-1938); Pragmatismo; Existencialismo; Filosofia Analítica e o problema da linguagem; Estruturalismo na França dos anos 1950; Filosofia Marxista e as questões estéticas; o momento Pós a partir dos anos 1970; a autonomia da ética; a Teoria da Justiça e o Liberalismo e tantos outros assuntos complexos da contemporaneidade aos quais a filosofia não se furta ao exame.
A existência precede a essência
A frase de Martin Heidegger, popularizada por Sartre, dá início à filosofia contemporânea e significa colocar em suspenso tudo o que a filosofia fez até então. Na metafísica de Aristóteles a identidade é baseada no princípio da não-contradição, nos dois valores de verdade da lógica binária – V ou F – é essencialista, considera o ser enquanto ser. Desta lógica emerge a definição de substância. A filosofia contemporânea é influenciada pelos avanços da matemática, pela teoria dos conjuntos que permite pensar aquém e além da identidade, do número.
A filosofia heideggeriana confronta a metafísica clássica baseada na relação Sujeito e Objeto do conhecimento. Na obra O ser e o tempo (1927) Heidegger demonstra a necessidade de perguntar sobre aquele que pergunta pelo ser e distingue o ente, aquele que pergunta, do ser, que denomina ser-aí – Dasein – que não pode ser explicado por qualquer essencialidade, mas por sua existência, por ser-no-mundo. É porque existimos que podemos ser; esse é o modo próprio do ser e suas possibilidades que se abrem na existência que transcorre para a morte, que é facticidade e implica que todas as possibilidades de ser tornem-se impossíveis.
Para dizer o que é o Dasein Heidegger faz uma analítica existencial com o objetivo de examinar como se efetiva essa existência e, para isso, utiliza o método fenomenológico, ou seja, investiga como se manifesta a coisa investigada a partir de seu modo de manifestação. Ocorre que aquilo que se mostra é o ente e não o ser, por isso é uma hermenêutica. Heidegger estabelece dois modos existenciais: inautêntico e autêntico.
A primeira característica fundamental do homem é ser-no-mundo que é, ao mesmo tempo, um ser-com-os-outros. O Dasein [Ser-aí] implica que o homem está lançado em uma situação no mundo, em uma relação ativa a partir desta situação. O mundo é o mundo comum, compartilhado por todos que constituem a comunidade do mundo. Nos termos enunciados por Heidegger e interpretados por Christian Dubois [1] o sentido do ser, inquestionado, caracteriza um ente-à-mão, e não o Dasein, que, por sua vez, se dá na cotidianidade, de tal modo que compreendo o outro e compreendo a mim mesmo por meio daquilo que todos fazemos – eu e os outros -, do ente que se manifesta no mundo como um é que predica. A compreensão do eu e o outro ocorre a partir do horizonte de preocupação (pré-ocupação) em três direções ligadas entre si: distanciamento (a medida de si é dada pelo [s] outro [s]), mediocridade (vivemos de modo banal, impessoal, publicamente) e nivelamento (sem singularidade, sem uma autêntica primeira pessoa).
O ser-em do Dasein é a estrutura fundamental, uma abertura do ser-no-mundo que se dá afetivamente, compreensivelmente e discursivamente. Na maior parte do tempo, entretanto, pelo aspecto Impessoal, constitui um fechamento para o Dasein, uma disposição que é modo de ser, para o Dasein, de sua própria abertura. Essa disposição, que é uma estrutura existencial, tem três características: 1. Tonalidade é a abertura do Dasein para si próprio em que sua facticidade se explicita no sentimento, na tonalidade que põe o Dasein diante do “quê” de seu-aí, defronte de seu inexorável enigma, o sentimento revela o ser-lançado, faz sentir o fardo da existência. 2. Totalidade, pois o mundo está presente e me concerne enquanto totalidade vinculando-se à tonalidade, ao sentimento, pois não há experiência no mundo que não se anuncie num sentimento, perspectiva que, destaca Dubois, se mantém como vinculação sujeito-objeto. 3. Abordagem do mundo em que o ente intramundano deixa-se aparecer no uso. É afetável, modulado pelo pathos.
Lançado no mundo, o Dasein vive a mundanidade, de modo Impessoal, distraído, ocupado no plano dos entes, das coisas, o que constitui uma existência inautêntica, marcada por uma falta, uma negatividade, que coloca o ser em débito. A solução deste débito tem relação com a consciência como referência a uma falta que conduz à existência autêntica. Como?
Existencialmente a falta tem relação com a facticidade do Dasein ser lançado, não ser posto por si mesmo, de forma a “[…] não ser jamais senhor do ser mais próprio do fundamento” (p.54). Posto no mundo, o Dasein é lançado como ser em projeto, levado a fazer escolhas, renúncias, corresponder ao fundamento de si mesmo do qual deve se encarregar, como possibilidade de si mesmo, tendo de ser sem ter se posto a si próprio. Está, fundamentalmente, em débito, envolvido em não-escolhas-de-si-próprio no Impessoal. Ao assumir a própria negatividade do débito consigo próprio, pelo “querer ter consciência”, dá-se a ruptura com o Impessoal e se produz a abertura que conduz a uma existência autêntica. Essa abertura é denominada por Heidegger de decisão, é a lucidez do Dasein em relação à morte cuja emergência elimina todas as possibilidades; é dar-se conta de ser-para-a-morte.
Estar decidido significa ser a partir de si próprio, no silêncio e na interioridade do ser, e não a partir do ente, que é preocupado, público e explícito. Implica em saber verdadeiramente estar consigo próprio. Não importa, enfatiza Dubois, o que o Dasein decide, nisto reside a singularidade, o mundo de fato de cada um. Importa a lucidez do Dasein, que decidido por-si, tem uma existência autêntica.
[1] DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2004