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Filosofia
Hannah Arendt e a necessidade de pensar
04/04/2020
Não é preciso recorrer à conhecida desconfiança platônica sobre o engano das imagens para aceitar a limitação do cinema em filmar o pensamento. É certo que por trás de um grande filme existe uma ideia genial expressa visualmente, mas, e o pensamento? Aquilo que é próprio do gesto filosófico? É possível filmar? Cinema e filosofia habitam epistemes diferentes, têm naturezas ontológicas diversas ainda que, eventualmente, possam almejar o mesmo fim. A filosofia propõe conceitos que, sustentados em argumentos válidos, trazem esclarecimento sobre a vida; já o cinema, utiliza a subjetividade dos sentimentos e da emoção para nos sensibilizar com visões de mundo explorando as possibilidades formais da linguagem. A filosofia dirige-se ao intelecto; o cinema mobiliza o afeto. Não é estranho que a vida introspectiva dos filósofos tenha pouco interesse para o cinema, a não ser que seja uma vida extraordinária como foi a de Hannah Arendth, grande filósofa do século XX.
Em 2012, a cineasta alemã Margarethe von Trotta dirigiu Hannah Arendt sem a pretensão de fazer uma obra biográfica completa, concentrou-se naquele que foi o episódio mais rumoroso da trajetória de Arendt: a cobertura do julgamento do oficial nazista Adolf Eichemann, em 1961, que havia sido capturado na Argentina pelo serviço secreto israelense e levado para um julgamento exemplar em Jerusalém. Hannah, judia que tinha sido presa em campo de confinamento e fugido da Alemanha quando Hitler assumiu o Reich, em 1933, era a pessoa talhada para a tarefa. Seguiu para Israel com o compromisso de escrever seis artigos para a revista The New Yorker. O filme traz acontecimentos na vida de Arendt que antecedem, acompanham e sucedem esse julgamento histórico do qual formulou um dos conceitos centrais para entender o século XX – que se tornou amplamente conhecido – da “banalização do mal”. Ainda que bem realizado, o filme é convencional, porém, tem o mérito de divulgar aquele que é o eixo central do legado arendtiano: o pensamento como ato livre, aberto para a compreensão.
A formação de Hannah Arendt deu-se na Alemanha dos anos 20, pela fenomenologia de Edmund Husserl e Karl Jaspers – seu orientador de doutorado e amigo de toda a vida – e, pelo existencialismo de Martin Heidegger. Nascida na cidade de Hannover, em 1906, foi a filha única de uma família judia de classe média que lhe proporcionou ótima formação cultural. A vontade e autonomia defendidas ao longo de sua vida se expressam já na infância, no episódio de sua alfabetização aos três anos, quando aprendeu a ler sozinha. Tinha uma imensa curiosidade intelectual (quase angústia), que era uma inquietação comum aos jovens da Alemanha do pós-guerra, desesperados por orientação numa época de instabilidade política, econômica e social. Foi estudar Filosofia na Universidade de Marburgo, da qual se espalhava a fama de um professor brilhante, nomeado em 1923. Relatos sobre Martin Heidegger diziam que conseguia revitalizar os gregos antigos, ensinando não a história da filosofia, mas como aprender a pensar. Hannah sentiu-se atraída pelo desafio intelectual e o encontro entre eles, em 1924, transformou suas vidas com impacto também sobre a história da filosofia. Heidegger escreveu a obra-chave do existencialismo, Ser e Tempo, estimulado pelo erotismo de sua relação com Hannah que, por sua vez, se tornou uma das grandes intérpretes dos acontecimentos históricos de seu tempo.
A relação entre eles é contada no livro História de um amor, da escritora e filósofa Antonia Grunemberg (Perspectiva, 2019). A narrativa, muito bem escrita, é baseada em múltiplas trocas de cartas e avança além da crônica, colocando em contexto ideias e acontecimentos. Não se trata, tão somente, do romance entre uma aluna brilhante e um filósofo no ápice de sua criação: o livro aborda como o pensamento de Heidegger rompe com a tradição da metafísica ocidental; traz as pessoas que fizeram parte dessa cena histórica e a experiência de cada uma com o nazismo. A judia Hannah sentiu-se segura apenas quando colocou os pés em Nova York, em maio de 1941, depois de um périplo de fuga pelo território conflagrado da Europa. Já Heidegger aceitou o cargo de reitor na Universidade de Friburgo e filiou-se ao Partido Nacional-Socialista em 1933, no momento em que Hitler acendia ao poder. Perceberá o equívoco: depois de um ano deixa a reitoria e se recolhe ao silêncio. Apesar de ter sido inocentado nos processos de responsabilidade do pós-guerra, jamais foi perdoado por alguns de seus amigos mais próximos. Hannah foi na contramão e teve a monumental coragem de preservar o sentimento pelo homem que a ensinou sobre o amor e a pensar. Reencontraram-se, voltaram a ser amigos e ela foi a divulgadora da obra dele nos Estados Unidos.
O gesto reafirma o princípio de autonomia que distingue Arendt como mulher livre e uma das principais filósofas do século XX. O filme de Von Trotta começa enfatizando esse traço da personalidade de Hannah, através de uma cena cotidiana construída pelo roteiro que escreveu com Pan Katz. É um diálogo entre Hannah (interpretada por Barbara Sukova) e sua grande amiga Mary MacCarthy sobre infidelidades masculinas. A naturalidade como Hannah aceita a vida amorosa extraconjugal de seu marido Heinrich Blücher – filósofo e professor como ela – é parte da estratégia desse filme de entretenimento chegar ao grande público. A curiosidade deste tópico biográfico é apontar a coerência como Hannah conduzia seus gestos públicos e sua vida íntima: com uma liberdade que só é devedora do comprometimento com a compreensão. Ela se dizia uma “pária consciente”, única maneira de preservar uma liberdade verdadeira, uma liberdade de pensar, como dizia: “sem corrimão”, sem apoio em pressupostos – o que fazia com coragem e tenacidade.
Ao contrário da filosofia distante do mundo, na tradição da vita contemplativa, Hannah defendia que o pensamento emerge da experiência vivida, da vita activa. Quando propôs à revista The New Yorker escrever sobre o julgamento de Eichemann ela já havia publicado As origens do totalitarismo (1951) e A condição humana (1958), obras fundamentais que marcam sua posição como teórica política. Tinha convicção que as circunstâncias da época exigiam análise e pensamento engajados. As origens é formado por três partes nas quais investiga a relação entre ideologia e terror, primeiro examinando a formação do antissemitismo e do imperialismo europeus que resultaram no nazismo, e, na sequência, o regime soviético. Houve desconforto na esquerda em relação à crítica que fez ao stalinismo, mas sua abordagem visionária transformou a obra em marco do pensamento político contemporâneo. Conforme Celso Lafer, aluno de Arendt e divulgador de sua obra no Brasil, A condição humana é seu livro mais importante, pois oferece uma teoria política diante da crise do século XX em que a novidade é tratar a política como parte da atividade comum do ser humano.
Ao viajar para Israel a fim de assistir o julgamento de Eichemann, Hannah pensou que encontraria um monstro, mas se defrontou com um palhaço, um burocrata moderno que cumpre ordens e se torna criminoso sem tomar consciência dos próprios atos. Dessa instrumentalização humana ela cunhou a expressão “banalidade do mal” e foi mal compreendida e atacada pela comunidade judaica – mas também porque analisou a participação dos chefes judeus na organização das execuções nos campos de extermínio. Nos artigos reunidos em Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963), retornam questões fundamentais de seu pensamento: a natureza do mal e como lidar com o desaparecimento da responsabilidade sob o domínio total. Num sistema em que o ser humano é descartável, ela identificou em Eichemann o símbolo da passagem da normalidade para o terror, em que seres humanos bem normais podem fazer coisas terríveis. Por quê isso acontece? Porque a capacidade de pensamento não estaria formada. E, aí, retornamos ao significado que Hannah Arendt dava ao ato de pensar e que aparece como a cena mais importante do filme, o discurso final que faz na universidade, quando enfatiza: “Tentar entender não é o mesmo que perdoar. Minha responsabilidade é entender”. Essa era, para Arendt, a tarefa da filosofia.
Um dos aspectos mais bonitos de sua vida é o empenho em preservar as amizades apesar das divergências políticas e de opinião. Desde a juventude na Alemanha ela participava do debate sionista com posições críticas e divergentes, era contra a criação do estado de Israel nos moldes nacionais europeus e se opunha a homens que respeitava e admirava e nos quais confiava. Um deles foi o filósofo Gershom Scholem, estudioso da mística judaica, ao qual escreveu em 24 de julho de 1963, buscando esclarecer, na arena das ideais, o conceito pela qual era tão atacada:
É minha opinião que o mal nunca pode ser radical, mas somente extremo; e que não possui nem uma profundidade, nem uma dimensão demoníaca. Ele pode abranger o mundo inteiro e devastá-lo, precisamente porque se difunde como um fungo sobre a sua superfície. É um desafio ao pensamento, como eu escrevi, porque o pensamento quer ir até o fundo, tenta ir às raízes das coisas e, no momento em que se interessa pelo mal, se frustra, porque não há nada. Essa é a banalidade. Só o Bem tem profundidade e pode ser radical.
Hannah Arendt fez um percurso próprio e independente. Foi a primeira mulher a assumir o status de professor pleno na Universidade de Princeton. Lecionou nas universidades de Berkeley, Columbia, Brooklyn College, Aberdeen (Escócia) e na New School for Social Research e deixou inacabado o livro A vida do espírito, no qual estava trabalhando quando faleceu, em dezembro de 1975. Defendia que a capacidade de pensar não é dada naturalmente, mas deve ser estimulada todos os dias, cultivada como uma habilidade para distinguir o bem do mal e o belo do feio. Pensar é um diálogo silencioso, de si consigo mesmo, única via de acesso a juízos morais capazes de evitar catástrofes. Em 1968 Hannah escreveu o livro de ensaios Homens em tempos sombrios, sobre pessoas singulares com as quais havia convivido e cujas ideias e coragem admirava, como Walter Benjamin, Bertolt Brecht e Karl Jaspers. Hannah Arendt também é admirável, ela foi farol e sua luz segue nos iluminando em tempos que seguem sombrios.
Acesso à Hannah Arendt, além de seus livros
- PODCAST O Estado da Arte sobre Hannah Arendt, com CELSO LAFER (Prof. de Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP e autor de A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt), CLÁUDIA PERRONE-MOISÉS (Profa. de Direito Internacional da USP e coordenadora do Centro de Estudos Hannah Arendt) e EDUARDO JARDIM (Prof. de Filosofia da PUC-RJ e autor de Hannah Arendt – pensadora da crise e de um novo início).
- Nos passos de Hannah Arendt. Biografia da historiadora francesa Laure Adler. RJ, Record, 2007.
- Hannah Arendt & Martin Heidegger: uma história de amor. Biografia escrita pela filósofa alemã Antonia Grunenberg, professora de Ciência Política na Universidade de Oldenburg, onde dirige o Centro Hannah Arendt.
- Filósofas: a presença das mulheres na filosofia. Juliana Pacheco (Org.). Artigo Hannah Arendt: tessituras de um percurso, de Olga Nancy P. Cortés. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016. 395 p. Disponível em: http://www.editorafi.org
Livros de Hannah Arendt publicados no Brasil
- Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. SP, Perspectiva, 1979.
- A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. RJ, Forense Universitária, 1981.
- Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann. SP, Companhia das Letras, 1987.
- Origens do totalitarismo: Anti-semitismo. Imperialismo. Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. SP, Companhia das Letras, 1989.
- Da revolução. São Paulo, Ática, 1990.
- A vida do espírito. Tradução de Cesar Augusto de Almeida, Antônio Abranches e Helena Martins. RJ, Relume Dumará, 1992.
- Lições sobre a filosofia política de Kant. Organização de Ronaldo Beiner, tradução de Ronaldo Beiner e André Duarte de Macedo. RJ, Relume Dumará, 1993.
- A dignidade da política: ensaios e conferências. Organização de Antônio Abranches, tradução de Helena Martins e outros. RJ, Relume Dumará, 1993.
- Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. Tradução de Antônio Trânsito e Gernot Kludasch. RJ, Relume Dumará, 1994.
- Sobre a violência. Tradução de André Duarte. RJ, Relume Dumará, 1994.
- Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. SP, Companhia das Letras, 1999.
- O que é política? Organização de Ursula Ludz, tradução de Reinaldo Guarany. RJ, Bertrand Brasil, 1999.
- Crises da república. Tradução de José Volkmann. SP, Perspectiva, 1999
- Compreensão e política e outros ensaios: 1930-1954. Lisboa, Antropos, 2001.
- Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Eichenberg. SP, Companhia das Letras, 2004.
- A promessa da política. Rio de Janeiro, Difel, 2008.