-
Artigos
Cinema
Imagens do Inconsciente entre os documentários essenciais
30/01/2018
A personalidade extraordinária da psiquiatra Nise da Silveira perpassa a trilogia Imagens do Inconsciente, último trabalho de Leon Hirszman. O comunista de Vila Isabel conheceu a tenaz doutora de Alagoas em 1968, em leitura das Bacantes, no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. Ficaram amigos e com os anos apaixonaram-se pela ideia de filmar as obras do Museu do Inconsciente. Nascida em 1905, em Maceió, Nise foi a única mulher na turma de 1926 da Faculdade de Medicina da Bahia. Trabalhando no Rio, no Centro Psiquiátrico Pedro II, ela revolucionou o tratamento da doença mental ao ser deslocada nos anos 40 para o setor de terapia ocupacional. Contra o isolamento e eletrochoques, construiu pontes para se comunicar com doentes que haviam perdido os meios de expressão lógico-racionais. Imagens do Inconsciente mostra a exuberância dessas pontes.
Livres para desenhar, pintar ou esculpir, os esquizofrênicos crônicos passaram a expressar pela arte, no ateliê de pintura e modelagem que Nise criou, seus tormentos profundos. As obras, reunidas e catalogadas conforme o processo terapêutico, constituem o Museu das Imagens do Inconsciente, fundado em 1952. Dos 250 mil documentos disponíveis, a médica e o cineasta escolheram três casos clínicos: Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis. O primeiro filme Em busca do espaço cotidiano tem um prólogo que sintetiza as atividades do Museu e defende mudanças nos hospitais psiquiátricos. A história de Fernando Diniz, menino negro e pobre, filho de uma costureira baiana, é introduzida a seguir.
O desafio para o cineasta era preservar a dimensão estética do cinema mantendo o caráter pedagógico do projeto, expondo com a máxima clareza o método terapêutico. Nise escolheu e ordenou as imagens a fim de narrar os processos psíquicos. O título remete ao sonho de Fernando por um lugar confortável e acolhedor. A figuração desse espaço é da casa de uma família rica, cliente da mãe que ele acompanhava na infância. Das garatujas iniciais formaram-se figuras isoladas até serem todas integradas numa pintura similar ao espaço da memória que o filme mostra em cena simulada. A tragédia de sua vida foi o amor impossível pela menina da família, dor que o fez romper com a realidade. As pinturas expressam a luta interior contra o caos e são explicadas pela psiquiatra na voz de Vanda Lacerda.
No reino das mães conta a história de Adelina e exemplifica a base teórica junguiana da terapêutica de Nise. Carl G. Jung defendeu a existência de um inconsciente coletivo comum a todos os seres humanos, subjacente aos processos psicológicos encontrados em mitos e símbolos de todos os tempos e culturas. Adelina entrou em colapso na adolescência frente a dificuldade de aceitar-se como mulher e romper o vínculo afetivo com a mãe dominadora. Estava internada há nove anos quando iniciou no ateliê. Suas pinturas e esculturas vinculam-se aos arquétipos femininos, são figurações do mito de Dafne que, assustada com o assédio de Apolo, se refugia nas entranhas da mãe terra. O conflito feminino aparece nas esculturas de Hécate, mãe terrível e deusa do mundo subterrâneo, até o apaziguamento, em belas pinturas de duas mulheres vestidas de azul. O percurso psíquico de Adelina revela-se em obras magníficas, ainda que a filha de camponeses, com formação primária e tímida, nada soubesse de mitologia.
Nise da Silveira resistia em tratar as obras como arte, pois eram para ela materiais de pesquisa sobre a psique. O filme respeita esse entendimento. Há rigorosa cronometragem de tempo de exposição das pinturas, desenhos e esculturas, numa variação de seis a dez segundos, intercalados por fundo preto de três segundos separando cada imagem.[1] Foram oito cortes até a versão definitiva e o mais desafiador foi o episódio sobre Carlos Pertuis, o personagem de A barca do sol.[2] Ele tinha 29 anos quando a mãe o internou durante um surto no qual dizia ver o “Planetário de Deus”. Esta imagem em sua mente foi a primeira que pintou. Do imenso volume de 21.300 mil obras, são oferecidos vislumbres. A beleza e diversidade do que produziu servem para explicar toda a teoria junguiana. O argumento de uma arqueologia da psique é consistente com as imagens impressionantes dos conflitos interiores de Carlos. Do seu inconsciente emergem símbolos universais, mitos e figuras de religiões cosmogônicas. Na pintura derradeira antecipa a própria morte, a imagem de um barco em repouso atracado no cais.
Carlos é o único artista que a câmera não mostra. Havia morrido em 1977, depois de 38 anos internado. Tinha uma fala ininteligível, ainda assim se expressou quando isso lhe foi permitido. Em rara entrevista que Hirszman deixou inédita ao morrer, Nise fala do fascínio pelos seres humanos mais infelizes, aqueles que beiram o abismo.[3] A arte pode ser insuficiente nas efetivas mudanças políticas, mas existem situações em que é o único meio de tornar a existência possível.
[1] VADICO, Luiz. O fundo preto – uma análise do documentário Imagens do Inconsciente, de Leon Hirszman. Revista Digital de Cine Documental, n. 04, Agosto 2008, pp 104-122. Disponível em http://www.doc.ubi.pt/04/artigo_luiz_vadico.pdf. Acesso em 15 de maio de 2017.
[2] HIRSZMAN, Leon. Leon Hirszman É Bom Falar. Catálogo da Mostra Leon de Ouro. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1995, p. 72. Montagem de entrevistas por Arnaldo Lorençato e Carlos Augusto Calil.
[3] Pouco depois do documentário Imagens do Inconsciente ter sido concluído Hirszman filmou uma entrevista com Nise da Silveira, em 15 e 19 de abril de 1986. Falecido em 15 de setembro de 1987, não conseguiu finalizar. Em 2014 o material foi montado por Eduardo Escorel e acompanha, como Posfácio, o álbum com os três filmes restaurados e lançados pelo Instituto Moreira Salles em set. 2015.
Este artigo integra o livro Documentário brasileiro – 100 filmes essenciais, lançado pela Abraccine em parceria com o Canal Brasil e Editora Letramento em 2017.