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Cinema
Kenji Mizoguchi na pandemia
15/07/2020
Assim como a literatura o cinema tem seus cânones, clássicos aos quais podemos ir na confiança de encontrar, como diz Ítalo Calvino, sentidos sempre atuais. Eis os filmes de Kenji Mizoguchi, nome basilar do cinema japonês junto com Akira Kurosawa e Yasujiro Ozu que (re)descobri nesses dias de isolamento pandêmico. Sempre tive certo fascínio pelo cinema japonês, especialmente por Ozu e suas crônicas da vida comum que assisti pela primeira vez no antigo Ponto de Cinema Sesc, na Porto Alegre dos anos 80. Agora, a maravilha de encontrar na internet as obras-primas desse venerado mestre que é Mizoguchi.
Nascido em Tóquio em 1898, começou a dirigir em 1923 e foi inovador desde o início, atitude que caracterizou sua filmografia de 85 filmes até Rua da vergonha, de 1956, ano em que faleceu de leucemia. Foi um perfeccionista que não hesitava em mudar de companhia para manter o controle artístico dos filmes. Cabe lembrar que na indústria de cinema no Japão o diretor era o comandante das unidades de trabalho e não o produtor, como no sistema norte-americano. Mudou de estúdio sete vezes, tornando-se admirado e temido pelo grau de exigência que aterrorizava as equipes. Os resultados eram compensadores e Mizoguchi era criador original reconhecido no Japão quando ganhou o prêmio de direção no Festival de Veneza, em 1952, por Oharu – A vida de uma cortesã e foi descoberto pelo Ocidente pela adesão entusiasmada dos jovens da Cahiers du Cinéma.
O que me tocou nos filmes de Mizo-san, como dizem os japoneses, é a inexorabilidade da vida que emana das rigorosas composições nas quais situa suas personagens. A última imagem de sua filmografia, o plano fechado da jovem prostituta – quase menina – que não tem outra alternativa senão chamar clientes em Rua da vergonha é a síntese de sua obra: uma reflexão sobre o lugar da mulher – não qualquer uma, mas as prostitutas – dentro de um círculo em que não há escolhas. É esse o périplo de Oharu, a cortesã do século XVII que, igual a uma Cabíria à qual falta esperança, termina vagando solitária pelas ruas ao som de lamentosos versos sobre um mundo fugaz repleto de dor.
Na há opção para autoengano nas heroínas trágicas de Mizoguchi. É sempre radical a consciência que têm da opressão à qual são submetidas, tanto nos painéis históricos pelos quais tinha grande apreço e realizava com rigorosa fidelidade ou no drama realista pelo qual também fixou sua obra. Seja a jovem viúva Senhorita Oyu (1951) impedida de casar pela tradição familiar da alta sociedade japonesa ou a mulher madura de Música de Gion (1953) que no pós-guerra aceita instruir uma jovem aprendiz na cultuada tradição das gueixas, o embate com a realidade é uma arena sem espaço para ilusões.
Mizoguchi é reconhecido na historiografia do cinema pelo uso pioneiro do plano-sequência que começou a empregar já em 1930 na técnica que chamava de “uma cena/uma tomada”. Foi o que encantou os franceses, justamente quando estavam discutindo o domínio de cena pelo diretor em que a construção dramática resulta da combinação dos personagens com os elementos cênicos capturados pela câmera. As sofisticadas composições encantam nos filmes de Mizoguchi e arrancam nossa atenção dos acontecimentos para nos arremessar a um sentido transcendente que se dá na matéria mesmo da realidade. Há em filmes como Contos da lua vaga (1953) e Os amantes crucificados (1954) um lirismo, uma poesia e um encanto trágicos que preservam o cinema como evento. O equilíbrio rigoroso do conjunto cênico e o ritmo fazem da visão dos filmes desse grande artista uma experiência quase espiritual.
Fontes:
- Mostra Clássicos do Cinema Japonês – Fundação Clóvis Salgado – Cine Humberto Mauro
- Petra Belas Artes à La Carte – filme Contos da lua vaga
- Livro Mestre Mizoguchi. Org. Lúcia Nagib. São Paulo: Navegar Editora, 1990.