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Legalidade no desvão da memória
03/10/2019
A história da Legalidade se mistura com os afetos do começo da minha vida profissional quando era estagiária de jornalismo na Rádio da Universidade. É incrível que tenhamos esperado 58 anos até que o cinema contasse essa fabulosa história de coragem e ousadia do povo gaúcho que, em 1961, se mobilizou para garantir a ordem constitucional. Quando Jânio Quadros renunciou à presidência, em 25 de agosto daquele ano, foi a liderança de Leonel Brizola que impediu o golpe militar fazendo valer a lei até que o vice João Goulart retornasse da China, onde estava em viagem diplomática. Foi uma façanha da qual a jornalista Iara de Almeida Bendati, minha chefe na Rádio da Ufrgs, falava com orgulho. A emoção de seus relatos contagiava estudantes que, como eu, queriam ser jornalistas no calor dos acontecimentos. O filme Legalidade, de Zeca Brito, mexe com as emoções de muitos de nós, gaúchos, e me faz voltar com saudade aos meus primeiros anos profissionais.
O rádio foi um dos protagonistas daquele momento heroico. Como Governador do Estado, Brizola teve a inteligência de usar a mídia dominante da época. Requisitou os transmissores da Rádio Guaíba situados na Ilha da Pintada e instalou um estúdio no Palácio Piratini. Em 27 de agosto tiveram início as transmissões que, sob o cuidado técnico do engenheiro Homero Simon, alcançaram o Brasil e o mundo, chegando a reunir 114 emissoras quando a rede foi encerrada, na posse de Jango, em 7 de setembro de 1961. Os discursos de Brizola e os boletins de notícias transformaram o microfone em instrumento de resistência contra os golpistas. Iara Bendati tinha 28 anos na época e cobria o noticiário político na Última Hora quando o Palácio se tornou trincheira de luta dos legalistas.
Nascida em Porto Alegre, ela contava com orgulho sua história de filha de operário e costureira que tinha sido normalista e professora primária antes de se formar na segunda turma do Curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia da Ufrgs, em 1956. Quando a Rádio da Universidade foi inaugurada, um ano depois, ela foi a primeira jornalista contratada. Na pioneira das emissoras universitárias do país, até hoje dedicada à música clássica, Iara deu as diretrizes jornalísticas e orientou centenas de estudantes de comunicação. Defendia a consistência e seriedade profissionais. Organizou as bases teóricas do curso de jornalismo da Puc, a Famecos, e em 1974, quando o Governo do Estado decidiu criar um museu da imprensa, ela coordenou o grupo de trabalho que resultou no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.
Eu admirava Iara, ela me inspirou a dar sempre o melhor de mim. Além disso, era casada com Aníbal Bendati, um argentino com o qual compartilhava a vida e o amor à política. Ao trabalhismo, é claro! E tinha suas filhas, Maria Mercedes e Lúcia Helena, que tinham com a Rádio da Universidade aquele sentimento de estar em casa, afinal, foram criadas entre as paredes do prédio que mais parece um castelinho, localizado no campus central da Ufrgs. Sem proclamar discursos feministas Iara desbravou várias frentes para as mulheres, criou sua família com dedicação, superando os desafios com tenacidade.
Legalidade, para mim, é saudade de Iara Bendati. Ela faleceu em 1998 e o filme de Zeca Brito me faz voltar aos seus relatos entusiasmados do tempo em que Brizola levantou o povo gaúcho em defesa da ordem constitucional. Zeca diz que esse filme era um compromisso que ele tinha com seu pai, Sapiran Brito tem uma trajetória política ligada ao trabalhismo, já foi Secretario de Cultura e candidato a prefeito de Bagé. Mas não era esse o motivo do pedido. A história da Campanha da Legalidade é tão boa, que era injustificável que ainda não tivesse sido filmada. A missão foi cumprida e o resultado é excelente, desde a recriação de Leonel Brizola por Leonardo Machado, passando pela combinação de material documental e ficcional, a direção de arte e a recriação da época. Zeca foi meu aluno na Unisinos, Iara Bendati foi professora para mim. Nos fios que juntam, cruzam e separam as vidas, a emoção e as experiências que vivemos são como sementes. Para um filme que cumpre o essencial do cinema que é emocionar, não poderia haver melhor fechamento do que os versos de Vitor Ramil. Nós vamos semear, companheiro, no coração, manhãs e frutos e sonhos.