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Cinema
Lucrecia Martel e a América Latina, Pátria Grande
08/05/2024
Não poderia haver nome mais expressivo para celebrar os 15 anos de um festival que desde seu início trilha os caminhos do cinema que se faz no continente latino-americano. A cineasta argentina Lucrecia Martel, um dos grandes nomes do cinema internacional, é a grande homenageada do 15º Festival Internacional de Cinema da Fronteira, de Bagé (RS), que tem como tema principal América Latina, Pátria Grande. Nascida na província de Salta, em 1966, a roteirista e diretora conquistou o reconhecimento que cabe aos artistas ousados e criativos. Nas últimas décadas, retrospectivas de seus trabalhos foram exibidas em instituições de arte e cultura como Harvard, MoMA, Lincoln Center, Cambridge e no Tate Museum de Londres. Além dos prêmios conquistados com os filmes nos grandes festivais de cinema, em 2019, ela presidiu o júri da 76ª edição do Festival de Cinema de Veneza. Sua obra reflete – com ousadia estética e atenção aos processos da cultura e da história – questões humanas universais com a consciência de um cinema vivido, realizado e compartilhado a partir do território latino-americano.
Formada em cinema na ENERC (Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematográfica), de Buenos Aires, Lucrecia inicia a carreira com os curtas-metragens de animação El 56 (1988) e Piso 24 (1989). Em 1995, a ficção live-action Rey muerto é exibido em diversos festivais e ganha o prêmio de melhor curta-metragem no Festival de Havana, em Cuba. O Pântano (La Ciénaga, 2001), é o primeiro longa, coprodução entre Argentina e Espanha, realizado a partir de um prêmio de roteiro conquistado no Festival de Sundance, EUA, em 1999. Lançado no Festival de Berlim, ganha o Urso de Prata destinado a obras inovadoras do cinema. O Pântano revelou o talento de uma artista cuja originalidade se confirmaria nas obras seguintes. Junto com A Menina santa (La Niña santa, 2004) e A Mulher sem cabeça (La Mujer sin cabeza, 2008), ambos indicados no Festival de Cinema de Cannes, os títulos constituem a chamada “Trilogia de Salta”, por terem sido filmados na região de origem da realizadora e por abordarem a temática comum do cotidiano de famílias de classe média ou pequena burguesia.
Os filmes apresentam um painel multifacetado de ambientes, histórias e personagens capturados no fluxo dos acontecimentos. O Pântano mostra a vida familiar de duas primas (Graciela Borges e Mercedes Morán) durante alguns dias de um verão sufocante – suas vivências no casamento e com os filhos. Há uma piscina em torno da qual os personagens se movimentam sem ânimo para entrar na água suja, cujo aspecto lodoso metaforiza a violência implícita nas relações entre as pessoas, cujas vidas são atravessadas por segredos e mútuos ressentimentos. Seu segundo longa A Menina santa (2004), uma coprodução entre Argentina, Espanha e Itália que conta com a produção executiva dos irmãos Almodóvar, se passa em um hotel em Salta e novamente o roteiro é armado em torno das mulheres e suas vidas em família, questões conjugais e os filhos. Uma adolescente (Maria Alché) vive com ardor sua fé cristã e o despertar para a sexualidade quando é importunada sexualmente por um médico (Carlos Belloso) que participa do congresso científico que ocorre no hotel. Imbuída de fervor religioso assume para si a missão de salvá-lo do pecado. Mais do que narrados, os acontecimentos são mostrados com uma objetividade que parece indiferente, porém revela preconceitos, ilusões, frustrações e desejos inconfessados das personagens.
A intenção de examinar a realidade a partir de um olhar observador, porém crítico, é acentuada em A Mulher sem cabeça (2008), vencedor do prêmio Fipresci da crítica no Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, coprodução entre Argentina, Espanha e França. Novamente as relações familiares agora da perspectiva de uma mulher (Maria Onetto) que, num descuido banal ao volante, atropela algo, quem sabe um animal ou uma pessoa. Essa incerteza gera um clima de tensão e suspense, aspectos recorrentes na obra da diretora que, neste filme estabelece uma ligação com o período da ditadura na Argentina. A mulher fica transtornada e se deixa manejar pelos homens da família que resolvem a situação eximindo-a da responsabilidade pelo acidente. Assim como na ditadura, enquanto algumas classes sociais sobrevivem desamparadas outras se beneficiam de suas relações com o poder instituído e escapam com facilidade à justiça.
Lucrecia Martel se firmou como a mais reconhecida representante da geração de cineastas argentinos surgida nos anos 90/2000. Seu curta Rey muerto fez parte do filme coletivo Histórias breves (1995), ponto de partida do movimento denominado Nuevo Cine Argentino, de produções independentes, uso de câmeras digitais, equipes de companheiros de escola, experimentação e inovação. Os projetos fílmicos de Lucrecia, porém, são concebidos em termos de produção tradicional, demandam custos altos e só isso explica o hiato até seu quarto longa-metragem, o drama épico Zama, lançado em 2017, no Festival de Veneza. Adaptado da novela histórica publicada em 1954 pelo escritor e jornalista argentino Antonio Di Benedetto, é uma coprodução internacional entre oito países com participação brasileira e espanhola no elenco e na produção. No século XVIII em Assunção, no Paraguai, o funcionário colonial espanhol Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho) espera em vão que seus superiores autorizem seu retorno para casa, para sua esposa e família. Desesperançado, se junta a uma expedição para localizar Vicuña Porto, um lendário fora-da-lei que pode ou não existir.
Como uma entomologista do comportamento humano Lucrecia submete seus personagens a um escrutínio implacável, expõe os autoenganos, suas ilusões consoladoras, os pequenos poderes que entrelaçam as relações. Costuma dizer que pessoas são como monstros, não por serem horrendas ou algo similar, mas por desconhecerem a própria natureza. O interesse por essa complexidade já estava no gesto adolescente de filmar a própria família, quando tinha cerca de 15 anos e seu pai comprou uma câmera de vídeo. A intenção era produzir lembranças familiares, mas ninguém usou o equipamento além dela, que filmava durante horas o dia a dia de sua grande família (Lucrecia é a segunda de sete filhos). As pessoas seguiam conversando indiferentes e acostumadas com a presença da câmera. O germe da cineasta curiosa, observadora e interessada pelas coisas do mundo estava lançado, ainda que cinema não tenha sido sua primeira opção como profissão.
O estilo de Lucrecia Martel é reconhecido como realismo crítico e impactou desde o início, quando seu longa de estreia O Pântano ganhou o prêmio de desenvolvimento de roteiro do Sundance Institute para cineastas independentes emergentes “que contribuem para a cultura visual mundial e promovem intercâmbios culturais”. Seu modo de fazer cinema é caracterizado pela atenção ao detalhe, muito planejamento e domínio da linguagem. Apresenta de maneira inovadora histórias da vida comum estilhaçando os limites da percepção para melhor compreender a realidade.
Além de fazer filmes, de curta e longa-metragem, dá aulas de cinema e enfatiza aos seus ouvintes: “Cambiar el mundo es la única cosa atractiva que hay para hacer en la existência.” É uma ideia que insere também uma dimensão política que se expressa nos seus filmes autorais e inventivos que confrontam modelos culturais e narrativos dominantes e desgastados. Intrínseco à sua obra há o gesto e a consciência de pertencer ao território físico e cultural desta América Latina, Pátria Grande, tema do 15º Festival Internacional de Cinema da Fronteira, de Bagé (RS) e da aula magna que irá ministrar, no dia 24 de abril, às 20h, no Centro Histórico Vila de Santa Thereza.
Texto publicado no catálogo do XV Festival Internacional de Cinema da Fronteira, realizado de 23 a 27 de abril, nas cidades de Santana do Livramento/RS, Rivera/UY e Bagé/RS.