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Merleau-Ponty e o corpo na teoria do documentário
02/05/2021
Werner Herzog é um cineasta que admiro. Egresso da geração do cinema novo alemão dos anos 60, é um dos mais profícuos de sua geração e, aos 76 anos, um dos mais ousados e criativos do cinema contemporâneo. Faz filmes de ficção, mas a importância maior de sua obra são os documentários, rastros de sua presença inquieta no mundo. Acompanha cientistas que arriscam a vida nos confins da Antártida (Encontros no fim do mundo /Encounters at the end of the word, 2007) ou na beira de vulcões com magma a céu aberto (Visita ao inferno /Into the inferno, 2016), quer entender como o aviador Dieter conseguiu sobreviver ao sofrimento que lhe impuseram os vietcongues (O pequeno Dieter precisa voar /Little Dieter needs to Fly, 1997) e, de outro lado, o que pensa um assassino no corredor da morte (Ao abismo /Into the abyss, 2011). Das cavernas de Chaveau, onde os homens deixaram seus sonhos (A Caverna dos Sonhos Esquecidos /Cave of Forgotten Dreams, 2010), ao mundo conectado pela internet (Eis os delírios do mundo conectado /Lo and behold: reveries of the connected world, 2016), sua câmera abre-se curiosa e voraz para o mundo, sedenta de vontade de saber.
Num de seus filmes mais conhecidos – O homem urso (Grizzly man, 2005) – Herzog utilizou as imagens do próprio Timothy Treadwell para buscar compreender como um rapaz que quase morreu de overdose de heroína torna-se ambientalista no Alasca e acredita que os perigosos ursos-pardos que filmou ao longo de 13 anos são seus amigos. Em 2003 ele e a namorada Amie Huguenard foram devorados pelos animais e tudo ficou registrado no áudio aberto da câmera com a qual Timothy filmava os bichos. A maneira como Herzog aborda o acontecimento, omitindo aos espectadores o áudio da morte, nos remete ao que André Bazin chamou de imagens obscenas – do sexo e da morte – cuja intensidade implicaria na solução ética de não serem mostradas. Seja como ato intencional ou resultado do acaso, essas imagens se multiplicam e fazem parte do tempo histórico das imagens técnicas. Desde a visão da morte de John Kennedy, em 1963, a do embaixador russo Andrei Karlov, executado diante das câmeras em 2016, são imagens com as quais convivemos e, cujo sentido instiga a pensar – em torno do cinema. O presente texto é um exercício neste sentido: tem como objetivo o exame do conceito de corpo, conforme Maurice Merleau-Ponty, a partir da fenomenologia, no horizonte da teoria do documentário.
No começo a fenomenologia
A fenomenologia é uma corrente que atravessa a filosofia contemporânea e marca o pensamento de alguns dos principais filósofos do século XX. Foi estabelecida por Edmund Husserl (1859-1938) ao propor uma epistemologia de retorno à experiência com as coisas concretas existentes. A vida cotidiana é permeada por fatos que se apresentam à consciência e por ela são captados. Os fatos são contingentes, acontecem aqui e agora, são particulares e reais. Husserl argumenta que a consciência capta o aspecto universal dos dados de fato, capta como essência, que é o modo típico como os fatos aparecem para a consciência. O conhecimento das essências é uma intuição, que Husserl chama de eidética, ou intuição da essência. A tarefa da fenomenologia é descrever os modos típicos pelos quais os dados de fato se apresentam à consciência, ou seja, como da experiência perceptiva dos fatos particulares e contingentes a consciência intui imediatamente os universais.
Ocorre que a consciência não existe por si, é sempre consciência de alguma coisa, daí decorrendo o conceito de intencionalidade como característica fundamental da consciência na relação entre sujeito – um eu capaz de atos de consciência como perceber, julgar, imaginar e recordar – e objeto – aquilo que se manifesta nesses atos, ou seja, corpos percebidos, imagens, pensamentos, recordações. O que se manifesta e aparece para a consciência é o fenômeno, que é “[…] tudo aquilo que se apresenta a nós originariamente na intuição (que, por assim dizer, se nos oferece em carne e osso) deve ser assumido assim como se apresenta, mas também apenas nos limites em que se apresenta” (Husserl apud Reale-Antiseri, p.182). Assim posto, Husserl propunha a fenomenologia como uma ciência voltada para as coisas existentes, cuja manifestação é tão evidente que não podem ser postas em dúvida. Propõe a epoqué como método de suspensão de qualquer juízo, seja do senso comum, científico ou filosófico para chegar na consciência como a mais inabalável evidência, resíduo fenomenológico fundamento de toda a realidade.
Estudante de filosofia na École Normale Supérieure de Paris nos anos 20, Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) segue o percurso da fenomenologia no momento em que é introduzida na França por Emmanuel Levinas, aluno de Edmund Husserl e Martin Heidegger em Friburgo, entre 1928 e 1929. A distinção na fenomenologia de Merleau-Ponty é o ajuntamento que faz da psicologia das formas, então em pleno desenvolvimento, resultandona obra mestra A fenomenologia da percepção (1945). É o mesmo ano em que profere a conferência O cinema e a nova psicologia, no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC), em 13 de março de 1945, na qual examina as condições que fazem da sétima arte lugar privilegiado da expressão de uma “visão do mundo”. Texto denso, ainda que breve, sua ressonância se faz sentir num momento de intenso debate sobre o estatuto da nova arte em meio a uma cinefilia vivida com paixão na França do pós-guerra. A partir do exame da referida conferência, o objetivo deste texto é compreender o pensamento filosófico de Merleau-Ponty no que tange a teoria do cinema. A noção de corpo, como desenvolvida em sua obra derradeira, O olho e o espírito, na qual discorre sobre pinturas de Paul Cézanne e Paul Klee, é especialmente importante para uma reflexão sobre o filme documentário.
O cinema e a nova psicologia
A conferência sobre o cinema foi publicada em 1948 no volume de ensaios Sens et non-sens (Gallimard) e no Brasil foi traduzida pelo poeta e intelectual carioca José Lino Grunewald, cuja primeira parte foi publicada no Jornal do Brasil por ocasião da morte de Merleau-Ponty. Em 1969 fez parte do livro A ideia do cinema, junto com ensaios de Walter Benjamin, Serguei Eisenstein, J.L. Godard, e outros, que Grunewald traduziu e organizou. Posteriormente, foi incluída na antologia A experiência do cinema (1983), obra organizada por Ismail Xavier com textos de teoria que fundamentaram os estudos de cinema no Brasil.
O cinema e a nova psicologia se divide em duas partes, sendo a primeira dedicada aos problemas da percepção pela psicologia moderna e a segunda ao filme. Partindo da descrição – fazendo a tarefa do fenomenólogo de investigar como os fenômenos se apresentam à consciência – Merleau-Ponty contesta a psicologia clássica para qual a percepção seria operação intelectual de decifração. A partir das sensações caberia à mente atribuir significado aos signos que se apresentam aos sentidos. Para a nova psicologia os objetos são percebidos como conjuntos, capturados como um todo relacional entre figura e fundo dispostos no espaço – no caso da visão – e no tempo – no caso da audição. O significado é dado imediatamente à consciência, de modo espontâneo e natural. “Quando percebo, não imagino o mundo: ele se organiza diante de mim”, afirma o filósofo (Xavier, 1983, p.107). Refutando a separação corpo e mente cartesiana, Merleau-Ponty discorda que a percepção seja uma espécie de ciência em embrião ou um exercício inaugural da inteligência e clama que seja reencontrada no aspecto de sua “[…] permutabilidade com o mundo e uma presença, nele, mais antiga do que a inteligência” (op. cit. 108). Assim como os objetos, as emoções se apresentam aos sentidos como evidência, são variações de nossas relações com outrem e com o mundo, legível em nossa atitude corporal, como comportamento. Cada pessoa tem um modo de estar no mundo, por meio, ao mesmo tempo, de seu corpo e de sua alma. Não se trata mais de considerar uma inteligência que constrói o mundo, mas um ser que, lançado no mundo, a ele está ligado por um elo natural.
Aplicando ao cinema os pressupostos da nova psicologia, Merleau-Ponty é muito preciso ao identificar o filme como uma forma temporal cujas imagens ganham sentido pela duração e maneira como são ordenadas. Identifica na função sonora o papel rítmico que, conjugado com as imagens, fornece um sentido de totalidade. A alternância entre silêncios e palavras configuram um diálogo próprio do cinema, de caráter cênico, dado pelo confronto dos personagens. O resultado é uma métrica complexa complementada pela música, cujo papel deve ser dissonante das imagens. O filme é um todo que comunica, diz Merleau-Ponty, qualquer coisa bem determinada, não se tratando de um pensamento, nem de uma evocação dos sentimentos da vida. E pergunta: que significa, então, o filme?
Ao contrário da literatura o cinema tem um realismo fundamental decorrente de seu aspecto fotográfico que permite representações visuais e sonoras fiéis. Mas assim como o romance ou a poesia, o cinema é arte e, portanto, as ideias e os fatos são apenas materiais estéticos à disposição da imaginação criadora. No filme a ideia está incorporada ao ritmo, emerge da estrutura temporal e da coexistência de suas partes. O aspecto central da abordagem de Merleau-Ponty é dizer que o filme, assim como o gesto imediatamente legível, não é pensado e, sim, percebido. Ao contrário do romance, o filme não informa sobre os pensamentos do homem, mas nos dá a sua conduta ou seu comportamento diretamente do modo peculiar de estar no mundo. Por isso o filósofo rejeita que o cinema faça das emoções dos personagens representações subjetivas, já que é por contemplar os corpos, visíveis nos gestos, no olhar, em suas mímicas, que compreendemos o filme, como compreendemos o mundo.
Merleau-Ponty finaliza exortando a filosofia contemporânea a realizar a tarefa de apresentar a consciência lançada no mundo, submetida ao exame das outras e, através delas, conhecer-se a si própria. Em lugar de fornecer explicações como os clássicos, a filosofia fenomenológica ou existencial se ocupa da inerência do eu ao mundo e ao próximo, em fazer ver o elo entre o indivíduo e o universo. Ainda que a exposição de ideias não seja tarefa da arte, diz que o cinema é particularmente apto a tornar manifesta a união do espírito com o corpo, do espírito com o mundo, e a expressão de um dentro do outro. Acontece que o assunto da coexistência, próprio da filosofia contemporânea, é por excelência cinematográfico, o que aproxima o filósofo do cineasta. Mas tal só ocorre, enfatiza Merleau-Ponty, num certo modo de ser, naquele em que o cinema, invenção técnica, é inventado uma segunda vez como instrumento artístico. Só então, citando Goethe, conclui que o pensamento e a técnica se correspondem.
O corpo no documentário
Ao contrário das narrativas de ficção – que criam mundos através de múltiplas estratégias de invenção – o documentário implica em imagens que resultam da presença no mundo histórico de um sujeito que opera a câmera. O aspecto principal da fruição do filme documentário está em remeter o espectador à circunstância do mundo em que se deu a tomada pela câmera, no transcorrer do acontecimento. A história e a teoria do documentário se desenvolvem em torno deste eixo e dos debates éticos e de representação dele decorrentes. Muito é dito sobre a manipulação das imagens, as estratégias discursivas e os modos de representação, mas a força da narrativa documental permanece em torno do fato de suas imagens trazerem a carne do mundo na confluência do transcorrer do acontecimento que se dá ao sujeito que sustenta a câmera com sua presença para o olhar de um espectador.
Em sua obra derradeira, O olho e o espírito (1963), Merleau-Ponty contrapõe ao cogito cartesiano a percepção como conhecimento sensível que se conjuga com o pensamento. O conceito de corpo é central em seu argumento, pois é no corpo que se dá a abertura para o mundo, pelo olhar – corpo vidente que é, ao mesmo tempo, visível. A visibilidade é inerente e precedente ao corpo. Numa abordagem fenomenológica da experiência espectador/imagem, Vivian Sobchack[1] detalha o movimento do espectador de endereçar-se à carne do mundo que a imagem-câmera figura. Partindo da noção de corpo em Merleau-Ponty, a autora aponta duas visões que convergem na fruição do mundo e fornecem inteligibilidade e significação na experiência fílmica: a do espectador e a do sujeito-da-câmera na tomada. São dois atos corporificados, duas visões que não sefundem, mas se encontram, constituindo uma experiência dialogicamente intersubjetiva, afirma Sobchack (apud Ramos, p. 201). A partir desta evidência, discute a ética em relação a mais intensa de todas as imagens: do corpo que morre. Autores que examinam o documentário pelo viés da mortalidade dos corpos dialogam com a tradição filosófica fenomenológica e existencialista. Para essas imagens, Bill Nichols usa o termo “magnitude”. Ao contrário da imagem-qualquer, a imagem da morte tem uma intensidade evidente inscrita no caráter absoluto do qual se reveste.
O documentário exige a presença do corpo no mundo histórico. É ele que garante a confiabilidade no discurso fílmica articulado por meio de estratégias de argumentação e persuasão em torno de asserções destinadas ao olhar do espectador. Diante de imagens da morte, no entanto, ocorre o que Nichols chama de “perfuração da camada enunciativa”, produzindo um tipo diferente de engajamento. Revestem-se de um aspecto de vivificação “[intensidade da vida] que permite tornar efetivamente experimentado o que na representação é só aludido” (apud Ramos, p. 202). Merleau-Ponty chamava atenção para a dimensão ética subjacente no encontro com o outro a partir da percepção de ser no mundo, não por um logo científico e racionalista, mas pela percepção. Finalizava O olho e o espírito dizendo não se tratar de um empirismo, mas da relação necessária entre pensamento e percepção, ou entre visão e espírito.
Retornando a André Bazin
Em Diante da dor dos outros Susan Sontag lembra que na proximidade dos fatos a sensação de banalidade é impossível “[…] dizer que a realidade se transforma num espetáculo é de um provincianismo assombroso” (apud Ramos, p.211). A tecnologia digital permite que hoje tudo seja filmado e transformado em espetáculo. Percursos teóricos pós-fenomenologia, pós-existencialismo, de corte analítico, na desconstrução discursiva, anunciadores do fim do homem e do humanismo, não nos ajudam a compreender todo o sentido implicado nas imagens técnicas de morte. Ainda que o excesso induza a uma leitura crítica sob argumentos de banalização e trivialidade, resta uma inquietação intelectual cujo retorno à fenomenologia existencialista de André Bazin abre perspectivas de interpretação.
A partir da análise da obra completa do teórico e crítico que fundou a Cahiers du cinéma, incluindo o acesso a textos até recentemente inéditos, o pesquisador e teórico do documentário Fernão Ramos chama atenção para um outro sentido que o conceito de ontologia toma, diferente da leitura simplificada circunscrita à intransigente defesa que Bazin fez pela preservação do realismo nas imagens. Ramos aponta, numa perspectiva fenomenológica, um sentido para ontologia como gênese da imagem mediada pela câmera, como figuração, na imagem, da circunstância da tomada. “Ver o outro pelos olhos do outro em meus olhos é a transfiguração cinematográfica baziniana por excelência” (p.188). As implicações da abertura de olhar do espectador na mediação da câmera na dimensão da tomada continua sendo, em nossa opinião, o que preserva o fascínio do cinema. Merleau-Ponty exultava com as obras de Cézanne e Klee na possibilidade da pintura moderna, ao irradiar o visível, ser pensamento sobre o mundo. Na visão que se faz do meio das coisas, diz o filósofo, não há pensamento sem que haja, antes, a experiência sensível do mundo, pois somos alma e corpo, ao mesmo tempo.
Na perspectiva ética de Merleau-Ponty, implica saber que o mundo está em torno de mim e não diante de mim. Na perspectiva de André Bazin, que o cinema possa revelar o mundo, abrir-se para a singularidade humana. Nos termos de Werner Herzog com uma maneira atlética de filmar, como o seu corpo no mundo, numa interação física com o acontecimento da filmagem. É quando, de nosso ponto de vista, o cinema permite a intersubjetividade do eu-espectador com o outro projetado na imagem na circunstância da tomada.
Referências
- BAZIN, André. O que é o cinema? Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
- MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução: Gerardo Dantas Barreto. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1969.
- ______. O cinema e a nova psicologia. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Tradução: José Lino Grunewald. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p.101-117.
- ______. O primado da percepção e suas consequências filosóficas. Tradução: Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1990.
- ______. Fenomenologia da percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
- NICHOLS, Bill. A voz do documentário. In: RAMOS, Fernão (org.) Teoria contemporânea do cinema, volume II. São Paulo: Editora Senac, 2005. p. 47-67.
- ______. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
- RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal… o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac, 2008.
- ______. A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem-intensa. In: RAMOS, Fernão (org.) Teoria contemporânea do cinema, volume II. São Paulo: Editora Senac, 2005. p. 159-225.
- REALE, G, ANTISERI, D. História da Filosofia, 6: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2005.
- SOBCHACK, Vivian. Inscrevendo o espaço ético: dez proposições sobre morte, representação e documentário. In: RAMOS, Fernão (org.) Teoria contemporânea do cinema, volume II. São Paulo: Editora Senac, 2005. p. 127-157.
- HERZOG, Werner. Conquista do inútil. SP: Martins Fontes, 2013.
[1] Norte-americana, teórica do cinema e crítica cultural, PhD em filosofia da linguagem, autora de The adress of the eye: a phenomenology of film experience (Princeton: PUP, 1992).