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Cinema
Nós que o amamos tanto
13/02/2019
O cineasta italiano Ettore Scola, morto em 19 de janeiro de 2016, aos 84 anos, foi autor de uma obra repleta de humor e humanismo.
Paixão e política, amor e História, humor e humanismo, comédia e drama. A obra de Ettore Scola compõe com excelência esses elementos e se distingue na história do cinema por um humanismo irredutível. Como todos os artistas que tratam profundamente da relação entre os seres humanos e sua existência, Scola fala de nossos problemas, mas os observa de uma perspectiva que os põe em um plano superior ao que se exaure no cotidiano, no concreto e no banal.
Poderíamos voltar a ele pelo prazer de rever a antológica cena-homenagem a Federico Fellini em Nós que nos Amávamos Tanto (C’eravamo Tanto Amati, 1974) ou para nos emocionarmos com a dona de casa que, no dia especial da visita de Hitler à Itália, vislumbra sua profunda solidão, ou, então, nos surpreendermos com a sofisticada narrativa de O Baile (Le Bal, 1983) que sintetiza em um salão de danças a história social da França no século XX. Mais do que uma coleção de momentos extraordinários, o cinema de Scola foi gestado no âmago de uma arte comprometida com a realidade. Dirigido ao ser humano, é feito de ternura pelas pessoas sem abrir mão de um corrosivo senso crítico.
Commedia all’italiana
A filmografia de mais de 40 títulos é a fração visível de um trabalho que começou muito cedo e que se fez no ambiente estimulante do cinema italiano do pós-guerra. Os artistas retrataram os escombros da Itália sofrida, mas também fizeram rir. Na adolescência, Scola lia revistas humorísticas, especialmente Marc’Aurelio, para a qual mandava desenhos e tiras, que o levaram, aos dezesseis anos, a tornar-se colaborador permanente. A revista reunia intelectuais e artistas, dos quais muitos viriam, nos anos subsequentes, a participar do ambiente cinematográfico. Nessa redação, onde conviveu com Federico Fellini, amizade celebrada em seu último filme Que Estranho Chamar-se Federico (Che Strano Chiamarsi Federico, 2013), Scola estabeleceu relações que iriam fundar sua trajetória artística.
Foi arrebatado ao cinema pelo mais importante dos diretores do Neorrealismo. Tinha dezessete anos em 1948 e saía da escola quando encontrou a trupe de Vittorio de Sica nas ruas de Roma, onde filmavam Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948). Foi uma paixão instantânea, que mudou seu destino e o jogou para o cinema definitivamente. Ladrões de Bicicleta permaneceu, por toda a vida, o seu filme preferido. Tinha por De Sica uma admiração que impregnou sua obra de uma dimensão sentimental. O embrião de Nós que nos Amávamos Tanto era um filme sobre a obsessão de um crítico de cinema pelo diretor de Ladrões de Bicicleta. A narrativa final, muita mais ampla, homenageia De Sica com imagens de uma manifestação pública, em que o já veterano artista fala para uma multidão em um estádio. Nós que nos Amávamos Tanto foi dedicado à memória de Vittorio De Sica, que faleceu em 1974, durante as filmagens.
Scola escreveu o roteiro de todos os seus filmes num espírito colaborativo aprendido desde os primeiros anos da carreira. Antes da estreia na direção, em 1964, com Fala-se de Mulheres (Se Permettete Parliamo di Donne), já havia escrito, em colaboração, mais de 50 filmes. No início, escrevia como “negro” – jargão com que os italianos designavam ghost-writer. Trabalhou para a indústria do cinema que surgiu na Itália ao final dos anos 40, quando se produziam filmes como numa linha de montagem, cabendo tarefas específicas a cada escritor: enquanto um desenvolvia argumentos, outros criavam gags, diálogos ou cenas cômicas. Começou a assinar roteiros no início dos anos 50, com Ruggero Maccari, sempre de filmes muito populares. O salto qualitativo deu-se no encontro com Antonio Pietrangeli, diretor injustamente esquecido, cujo trabalho meticuloso fez Scola passar dos filmes populares para produções mais elaboradas. Segundo Ennio Bíspuri, autor de Ettore Scola, un Umanista nel Cinema Italiano, nosso diretor aprendeu com Pietrangeli o rigor, a lenta metabolização do ato criativo e uma escritura rigorosa visando o aprofundamento da psicologia dos personagens.
De análoga importância foi o encontro com Dino Risi, em 1959, com o qual colaborou em oito roteiros de filmes que foram extraordinários sucessos, pedras fundamentais e ícones da commedia all’italiana, gênero que se distingue por fazer humor com temas trágicos como a morte, o suicídio, a violência ou a pobreza. O termo all’italiana deriva do filme de Pietro Germi Divorzio all’italiana (1961) e diferencia esse gênero ácido e corrosivo da comédia convencional feita na Itália dos anos 50, também chamada de Neorrealismo Rosa. O cinema de Scola é fruto do encontro da ética civil do Neorrealismo com a crítica de costumes desse gênero de humor negro do qual foi um dos artífices – especialmente como roteirista. Scola, porém, supera o gênero. Além da formação como humorista na Marc’Aurelio, uma sólida formação intelectual com ampla cultura livresca, a participação e o engajamento político no Partido Comunista Italiano, o diferenciam dos principais criadores da commedia all’italiana. O humanismo scoliano se destaca do niilismo de Risi e do anarquismo misantropo de Monicelli, mestres que satirizavam impiedosamente o italiano médio emergente do pós-guerra: consumista, americanizado, corrupto. Apesar de diferenciar-se no gênero, ironicamente é de Scola a obra mais cruel da commedia all’italiana. Feios, Sujos e Malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi, 1976) é um filme tão cáustico e pessimista em relação aos pobres que é impensável que qualquer partido de esquerda o aprovasse. O diretor manteve sempre independência em relação ao PCI, apesar da militância que se estendeu por toda a vida. Só o filme Um Burguês Muito Pequeno (Un Borghese Piccolo, 1977), de Monicelli, aproxima-se em termos de ferocidade grotesca à Feios Sujos e Malvados.
A comédia é um gênero em que os elementos cômicos prevalecem sobre os dramáticos. Em Scola, o humor é transversal: perpassa tudo, mas não é o núcleo da narrativa – é parte integrante da vida, como o amor, a morte, a paixão ou a política. Em sua obra, o humor é uma forma de combate, sem qualquer sentido evasivo. Scola tem a mesma preocupação social do Neorrealismo, porém vista de uma perspectiva cômica, engajada politicamente e voltada ao público.
O personagem em primeiro plano
Um dos procedimentos reiterativos na sua obra consiste em fazer coincidir um momento chave da História com a história de uma pessoa, um casal, uma família ou um grupo de amigos, em que se contrapõem o privado e o público, o particular e o geral. Em qualquer dos contextos, segundo Bíspuri, prevalece o personagem sobre a trama, anônimos sobre um fundo histórico, em que as emoções se misturam com a dimensão política. Os personagens não são tipos que representam conceitos ou uma ideologia: são contraditórios e sofrem os eventos históricos na carne, inseridos em longos arcos de tempo.
O exemplo mais bem-acabado da combinação do tempo histórico com a política e os sentimentos é a relação de amor e amizade entre os personagens de Nós que nos Amávamos Tanto (1974). O enfermeiro Antonio (Nino Manfredi), o advogado Gianni (Vittorio Gassman) e o professor e cinéfilo Nicola Palumbo (Stefano Satta Flores) se conhecem na guerra, são partigiani, companheiros na resistência italiana ao fascismo, militantes do PCI. Separam-se com a libertação da Itália e, ao longo de trinta anos, em diferentes momentos de suas vidas, apaixonam-se pela mesma mulher, a aspirante a atriz Luciana (Stefania Sandrelli). O lugar de ancoragem da trama é o Rei da Meia-Porção, restaurante onde, entre idas e vindas, os amigos se encontram e reencontram. A narrativa começa no tempo presente, em 1974, recua a 1944 e, a partir do fim da guerra, avança mostrando os acontecimentos na vida de cada um dos amigos, os sonhos fracassados e as desilusões acomodadas na passagem do tempo. O filme termina com a descoberta da traição de Gianni aos ideais comunistas da resistência, tendo-se tornado um advogado rico e corrupto. Ao contrário dele, o professor Palumbo abdicou da família em nome dos ideais da juventude. Incondicionalmente apaixonado por Ladrões de Bicicleta, diante da oportunidade de falar com De Sica prefere calar, pois a única coisa que poderia dizer seria sobre as próprias desilusões e sonhos perdidos. Palumbo, trinta anos depois da guerra, enuncia uma frase síntese do pensamento de Scola: queríamos mudar o mundo, mas foi o mundo que nos mudou. A História entra nos personagens, transformando-os. Resignados, nada podem mudar.
O cineasta dizia que o homem é sempre contemporâneo de si mesmo, não importando que se passe de Júlio César a Hitler, pois o que fica é o ser humano. O sujeito anônimo, que não é nenhum líder político, que não interfere ou participa dos grandes acontecimentos históricos, é o protagonista dos filmes de Ettore Scola.
Claustrofobia como método
Scola preferia filmar em ambientes fechados porque considerava ser a melhor maneira de explorar a psicologia dos personagens. No espaço limitado buscava, nas suas próprias palavras, “uma força claustrofóbica motivadora” que aparece no barraco de Feios, Sujos e Malvados (1976), no prédio em que transcorre Um Dia muito Especial (Una Giornata Particolare, 1977), na casa de O Terraço (La Terrazza, 1980), na carruagem de Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes, 1982) ou no apartamento de A Família (La Famiglia, 1987). O tempo, ao contrário, era distendido, retornando ao passado, dando uma visão em perspectiva dos dramas humanos. É o caso da sala de cinema de Splendor (1989), vista a partir da decadência dos anos 80, retrocede ao princípio do cinema como espetáculo mambembe, passando pelo apogeu da época de ouro da indústria, acompanhando a sangria com a chegada da televisão e do videocassete, até o inevitável fim, em que, abandonada pelo público, sucumbe à especulação imobiliária. Tudo é contado pela perspectiva do dono da sala (Marcello Mastroianni), da lanterninha (Marina Vlady) e do projecionista (Massimo Troisi), desde um plano inicial que induz o espectador a acompanhar a narrativa pelas lembranças de cada um. A sequência final, estabelecida a partir do mesmo plano inicial, ainda que seja carregada da melancolia do fim, é de uma profunda emoção, fazendo uma das mais admiráveis, e sublimes, homenagens ao cinema.
Outro exemplo notável de concentração espacial e expansão temporal é A Família, uma de suas obras mais conhecidas e premiadas. Aqui a limitação espacial é aplicada rigorosamente, tendo como palco único o apartamento no qual os personagens da família, os amigos e amores, frequentam e habitam. O filme inicia com a comemoração dos 80 anos do professor vivido por Vittorio Gassman, retrocede ao momento do seu batismo para avançar cronologicamente por meio de episódios que mostram as transformações e escolhas que fez, ou não fez, ao longo da vida. A teatralização decorre de estarmos sempre defronte do mesmo espaço, no qual os personagens entram e saem, como em um palco, trazendo para a intimidade do apartamento os acontecimentos do mundo. O que se vê, todavia, está longe de ser teatral: é puro cinema. Scola desenvolvia o roteiro até extrair dele seres profundamente humanos, pois considerava o realismo um comprometimento ético e a isso fazia servir a linguagem do cinema. “Para mim, a câmera não é um instrumento hedonístico para sofisticações formais”, declarou em entrevista publicada no livro I Film di Ettore Scola.
Isso não significa que tenha usado os recursos da linguagem de modo banal, ao contrário, foi um cineasta virtuoso. Basta considerar os longos planos de abertura de O Jantar (La Cena, 1998) ou de Feios, Sujos e Malvados, em que a câmera passeia pelo ambiente descrevendo o espaço e mostrando como, nele, se inserem os personagens. Quando filmou a peça do Théâtre du Campagnol, que resultou em O Baile (1982), uma de suas obras mais virtuosas, o meio cinematográfico e todos os recursos de sua gramática foram usados para narrar cinquenta anos da história francesa em um salão de danças, em que pessoas comuns vivem a História dentro daquele ambiente de lazer. As transformações vão desde antes da segunda guerra mundial até o início dos anos oitenta, com os mesmos atores representando personagens diferentes a cada época. As mudanças de música e vestuário, as variações cromáticas da película, indicam a passagem do tempo. Não há nenhum diálogo em todo filme – ao menos não em palavras. A interpretação dos atores, com semblantes e olhares inesquecíveis, manifesta – no silêncio das palavras – uma eloquência de causar inveja a cineastas logorreicos. Quando esteve em Porto Alegre, em 1996, Scola revelou ter escrito diálogos para que os atores pudessem construir esses personagens com profundidade psicológica, evitando assim a caricatura.
A variedade humana aparece plena em O Jantar, no qual faz coincidir o tempo fílmico real de duas horas com o tempo narrativo de uma noite de refeições no restaurante Arturo al Portico, no qual adentramos com Fanny Ardant, a dona que inicia mais uma jornada de trabalho. São mais de 30 personagens, cujas vidas se revelam em falas e gestos que deixam entrever mundos inteiros, universos íntimos que estão dentro daqueles personagens, que pertencem a ruas distantes dali, do mundo fora do restaurante, mas que emergem às mesas de O Jantar. Ettore Scola foi um cineasta para o qual o cinema foi um meio de reflexão sobre o ser humano, uma forma de crítica social e política, mas também um canto à alegria de vivermos juntos.
A geração do cinema italiano da qual foi contemporâneo, inclui os grandes autores e inventores que foram Antonioni, Fellini e Pasolini. Scola emergiu numa época em que o valor crítico de um filme estava na ruptura de linguagem festejada pela onda francesa. Na contramão, vocacionado pelo gênero popular e em permanente diálogo com o grande público, o cineasta deixa uma obra inequivocamente autoral em que a crítica se faz pelo conteúdo, na melhor tradição do cinema realista.
Dedicado a Giba Assis Brasil
Artigo escrito com Juliano Fontanive Dupont e publicado na revista Teorema Crítica de Cinema – nº27 – Ago. 2016