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Filosofia
Os símbolos no documentário As estátuas também morrem e no webvídeo Plato’s Atlantis
20/03/2019
O ser humano é simbólico, o que significa dizer que nisso se diferencia de todos os outros seres existentes, e sua relação com o mundo só é possível através de sistemas de representação. Desde os primórdios, os desenhos deixados nas cavernas antigas testemunham o desejo humano de transfiguração da realidade numa linguagem imaginativa e poética. Em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum, argumenta Ernst Cassirer, tal o envolvimento humano com formas linguísticas, imagens artísticas, símbolos míticos ou ritos religiosos, por meio dos quais expressa sua relação com o mundo. Trata-se de uma dimensão estética que atravessa a existência e aparece tanto na arte quanto nos objetos utilitários feitos para a cotidianidade, destinados a outros fins que não em si mesmos. As formas simbólicas pelas quais se expressam carregam significados cuja compreensão é dependente dos contextos de origem, circulação e apropriação.
Este artigo examina aspectos do símbolo e seus significados pela análise de dois filmes produzidos em contextos diferentes cujos conteúdos são referenciados em objetos anteriores: o documentário As Estátuas Também Morrem (Les Statues Meurent Aussi), dirigido em 1953 pelos cineastas franceses Chris Marker e Alain Resnais e Plato’s Atlantis, webvídeo do lançamento da coleção spring/summer 2010 do estilista Alexander McQueen, dirigido por Nick Kinght. Para tanto, examinamos o símbolo desde sua formulação conceitual, no mundo grego, em diálogo com a abordagem da antropologia filosófica de Ernst Cassirer e as metodológicas aplicadas à análise de imagens por Erwin Panofsky, Jacques Aumont e Michel Marie. O objetivo é examinar os objetos simbólicos apropriados pelo discurso fílmico e pelo discurso de moda, desde pressupostos significados originais que se reconfiguram em novos sentidos desdobrados pelos contextos de recepção.
Para desenvolver uma problemática do símbolo nos filmes referidos, interessa recuperar a origem da palavra que deriva do grego e significa “juntar” partes separadas de uma mesma coisa para expressar uma relação especial entre as pessoas. Quando amigos ou hóspedes se separavam, na Grécia antiga, tinham o costume de partir algum objeto (anel, moeda, etc), cada um levando consigo uma parte deste todo dividido. Tais partes, mantidas com zelo de geração em geração, uma vez reunidas novamente simbolizavam o reconhecimento de uma ligação especial entre os portadores de cada metade. Este signo de reconhecimento chamava-se símbolo. Platão utiliza a expressão em O Banquete, ao falar sobre o mito da origem do amor quando refere-se à solução encontrada por Zeus para conter a rebeldia dos homens, das mulheres e dos seres andróginos contra os deuses. Para que continuassem existindo, mas fossem mais fracos, como eram ao mesmo tempo masculinos e femininos, Zeus decide dividi-los cortando em duas partes. “Cada um de nós portanto é uma téssera complementar […].” No amor, união das partes separadas, os seres humanos poderiam voltar a ser um, como no princípio. O símbolo é, portanto, a evocação de uma parte correspondente, remetendo a uma realidade pela recomposição de um inteiro.
As estátuas também morrem
O documentário As Estátuas Também Morrem originou-se de uma solicitação feita pela revista Présence Africaine ao cineasta Alain Resnais para que realizasse um documentário sobre “arte negra”. Fundada em Paris, em 1947, a publicação surgiu no contexto de valorização da cultura negra em países africanos frente à opressão colonialista da cultura francesa. O documentário é orientado pelo conceito de negritude (négritude em francês), formulado em 1935 pelo escritor Aimé Césaire, nascido na Martinica, como gesto político de reivindicação de um lugar de valor para a identidade negra e sua cultura. Entre os filmes que abordam o massacre cultural dos povos africanos Stam e Shohat consideram As Estátuas Também Morrem um dos mais importantes. O cineasta que viria a fissurar a linguagem clássica do cinema com os exuberantes Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, 1959) e O Ano Passado em Marienbad (L’année Dernière à Marienbad, 1961) já era no início dos anos 50 um realizador notável por uma série de curtas-metragens sobre ícones da arte como Van Gogh, Goya, entre outros. Para realizar o filme que deveria exaltar os valores culturais dos povos negros, ele convida para integrar-se ao projeto os cineastas Chris Marker e Ghislain Cocquet, este fotógrafo das imagens originais captadas no Museu do Homem. O colecionador e marchand Charles Ratton, creditado na abertura como consultor artístico, é o especialista nos quais os cineastas apoiam-se para desenvolver o filme.
O título inicial seria tão somente L’art Nègre, mas acabou sendo titulado como Les Statues Meurent Aussi abarcando, deste modo, uma reflexão sobre o deslocamento dos objetos e sua designação nos diferentes contextos por onde circulam: na sua origem como artefatos utilitários ou integrados à rituais religiosos e, no museu, como objetos museológicos contemplados por olhares curiosos. O filme tem 30 min e é uma colagem de segmentos fílmicos e imagens de fontes diferentes, algumas especialmente captadas e outras selecionadas de antigos filmes etnográficos. Esses segmentos mostram cenas de rituais religiosos de grupos africanos e, também, o desembarque de comitivas de homens brancos, europeus, em território africano. Tudo se articula pelo tema do conflito entre a cultura europeia e as culturas africanas, sob a organização colonial. Os segmentos são combinados com texto narrado pelo ator Jean Négroni, ao som da música de Guy Bernard. Ao misturar os discursos literário e cinematográfico, As Estátuas Também Morrem aponta para o conceito do filme-ensaio, então em processo, do qual Chris Marker será grande expoente. Foi o segundo curta-metragem do cineasta que inovaria combinando diferentes campos e disciplinas, em diálogo com as tradições do ensaio literário para fazer do discurso fílmico também um pensamento sobre o mundo.
Plato’s Atlantis
O objeto de nossa análise é o filme disponível na web do desfile de moda intitulado Plato’s Atlantis (Atlântida de Platão) ocorrido em Paris, no dia 6 de outubro de 2009, e filmado pela produtora Showstudio. O valor econômico agregado ao vestuário dinamiza na contemporaneidade todos os elementos associados à moda, como podemos verificar na coleção de roupas criadas em torno do tema do mito da civilização perdida de Atlântida, descrita por Platão no Timeu e em Crítias. A criação foi do designer britânico Alexander McQueen, cujos desfiles são “[…] espetáculos criativos e perturbadores, unindo arte e tecnologia em narrativas dramáticas.” Detentor da própria marca, ligada ao Grupo Gucci, McQueen era chamado pela imprensa da moda de enfant terrible, pelas extravagâncias de suas roupas nas quais combinava proezas no corte com inovações técnicas relacionadas a tecidos produzidos a partir de materiais incomuns. Com formação em artes na Central St. Martin’s de Londres, fazia dos desfiles espetáculos em que a roupa é elemento de um discurso multifacetado. A noção de que a moda é uma forma de arte já é item incorporado por este discurso. Tratado como verdadeiro artista, suas peças já foram expostas no Museu Metropolitano de Arte, em Nova York e no Museu Victoria & Albert, em Londres. A coleção Plato’s Atlantis, da temporada primavera/verão 2010 foi seu último trabalho, ele faleceu em 11 de fevereiro de 2010.
O filme de registro do desfile tem a duração de 17 min e 20 seg e foi realizado pela Showstudio.com, website criado em 2000 pelo fotógrafo e diretor de filmes de moda Nick Knight que apresentou vários trabalhos do estilista McQueen. Plato’s Atlantis foi especialmente importante pois o desfile foi planejado para também ser transmitido ao vivo, via web. Na ocasião, dia 6 de outubro de 2009, a cantora Lady Gaga lançou um clip do novo trabalho e o congestionamento na rede impediu que a transmissão em tempo real fosse realizada conforme o planejamento. Toda a concepção do desfile foi feita para o espetáculo destinado aos assistentes que se encontravam no local e aqueles que, ainda agora, podem assistir via web.
O desfile começa com uma encenação projetada em amplo telão ao fundo da passarela na qual se vê uma mulher, como se estivesse nascendo, cujo corpo vai se transformando em uma figura com vários braços que tomam a forma de serpentes e se dissolvem em formas sinuosas e geométricas, criadas com efeitos tecnológicos e de luz. A mulher é interpretada pela modelo Raquel Zimmerman. Na área da passarela estão dispostos dois trilhos sobre os quais correm duas gigantescas câmeras filmadoras com grua que se movem ao longo da passarela. Os equipamentos têm duas funções: capturar e projetar no telão ao fundo imagens das pessoas que estão assistindo o desfile da plateia e imagens do próprio desfile, a partir do momento em que as modelos entram na passarela e na medida em que se desenvolve. No total são apresentadas 47 peças de roupas femininas, por modelos maquiadas e vestidas dentro do conceito proposto a partir de uma releitura do mito de Atlântida.
Para uma interpretação dos filmes
A obra de arte tem sempre significação estética, nos informa Irwin Panofski, “[…] quer sirva ou não a um fim prático e quer seja boa ou má, o tipo de experiência que ela requer é sempre estética.” Para o estudioso humanista, seja ou não historiador, interessa examinar essas obras dentro do que o autor chama de “cosmo da cultura”, buscando os registros que o homem deixa atrás de si percebendo neles relações de significação. Para extrair significado dos objetos artísticos, plenos de experiência estética, o estudioso supõe hipóteses de interpretação que são fornecidas pelo objeto em si, considerado dentro do seu contexto de origem, combinadas com chaves de leitura de quem está interpretando. Nos dois filmes aqui tratados, interessa investigar a semântica do símbolo conforme os critérios estabelecidos por Paul Ricoeur em A simbólica do mal.
Para o hermeneuta francês, o simbolismo em sua configuração primária e original tem três aspectos: o cósmico das hierofanias; o aspecto noturno do trabalho dos sonhos e a criatividade da palavra poética. “Essas três dimensões – cósmica, onírica e poética – se encontram presentes em todo símbolo autêntico; somente em conexão com essas três funções do símbolo poderemos compreender o aspecto reflexivo dos símbolos.” A questão em torno da qual propomos uma interpretação para os filmes que são assunto de nossa reflexão foi sugerida pelo discurso fílmico de As Estátuas Também Morrem quando o narrador, sobre imagens de estátuas africanas dispostas no museu, argumenta “Como chamar de objeto religioso, onde tudo é religião ou objeto de arte, onde tudo é arte? Tudo é culto: culto do mundo. Tudo é sagrado, porque toda criação é sagrada” [9:30 a 10:12]. Ricoeur estabelece critérios que distinguem o símbolo, a partir da intencionalidade, do signo, da metáfora e da alegoria. No sentido original o símbolo expressa em si uma dupla intencionalidade, de tal forma que o sentido literal (primeira intencionalidade) se conjuga com um sentido por analogia (segunda intencionalidade) que aponta para além de si. É o caso das máscaras e estátuas mostradas no filme.
O filme apresenta as sociedades africanas a partir de sua produção de identidade própria, suas máscaras variadas, os rituais e modos de vida nos segmentos de antigos filmes etnográficos, assim como seus meios de produção. São peças do Mali, obras de Gana, da Etiópia, do Chade, resquícios dos reinos cristãos da Núbia, de comunidades do litoral do Oceano Índico, da região dos Grandes Lagos, do Baixo Zaire, de Angola e Benin, um amplo resgate artístico e histórico. Em contraponto, é apresentada a visão capitalista do continente europeu, que tem seu ponto máximo no momento em que os afrodescendentes só conseguem ter contato com sua cultura ancestral através da vitrine de um museu. Para os cineastas, as estátuas produzidas por essas sociedades morrem no dia em que são catalogadas e expostas à visitação, fora de seu contexto histórico original, tornando-se objeto de comércio e convenções artísticas, cobiçadas pelo Estado e por curadores de diversas instituições. As estátuas morrem quando perdem o seu significado sagrado de criação e transformam-se em peça “desconhecida” ou “anônima” nas placas de registro de identificação.
O discurso fílmico de As Estátuas Também Morrem lamenta a perda de integração do homem com a natureza e os animais. Há um encantamento com um mundo perdido que aparece na dramatização do narrador, conjugado com a música às vezes ritmada, outras com algum suspense, criada pelo compositor Guy Bernard, e o tratamento visual dado às máscaras e estátuas vistas em sequência. O narrador chama atenção para a relação orgânica, que havia, do homem com o mundo, verificável no entrelaçamento das formas dos objetos com a natureza. Os objetos são símbolos sagrados, no sentido primeiro e original. Deslocados de seu lugar de origem, no entanto, são apenas formas simbólicas destituídas do aspecto primeiro. O filme conclui afirmando: “Não há ruptura entre a civilização africana e a nossa, somos herdeiros de dois passados”. Tal síntese que aproxima práticas culturais africanas desaparecidas da cultura europeia da metade do século XX, num contexto de valorização das diferenças entre os povos, é expressa na ideia de que “É sempre contra a morte que se luta”, com a qual o filme encerra.
A nostalgia de um tempo passado, perdido e idealizado, também aparece no desfile Plato’s Atlantis, que aponta, conforme Maximiliano Zapata, para uma reflexão sobre o tempo presente e o futuro: “O desfile Plato’s Atlantis criou metáforas visuais para representar a intensidade animal no corpo do homem, sob os signos da moda. No conjunto dessas metáforas aparece a condição trágica do humano, sua finitude como significante e o nascimento de um ser híbrido com a anatomia dos seres do mar”. A coleção de roupas foi inspirada no mito de Atlântida, descrito nos diálogos Timeu e Crítias que dão continuidade ao exame das formas ideais de vida social e política iniciado em A República. É um relato cosmológico, no qual Sócrates desenvolve sobre a união do corpo com a alma e, para isso, a título de exemplo, refere-se a uma cidade desaparecida, a Ilha de Atlântida, de extraordinária abundância, avançada em sua organização social e política, na qual os seres humanos viviam em harmonia com a natureza. Ao resgatar o mito da civilização perdida, o discurso da moda faz uma reflexão sobre a atualidade, aborda questões contemporâneas relativas à sustentabilidade do planeta, à destruição da natureza e às inovações tecnológicas. Neste aspecto, MacQueen é bastante valorizado pelo que seria uma “perspectiva visionária”. Ocorre que seu discurso de harmonia entra em contradição com as exigências de um mercado regulado pelo conceito de novidade. Plato’s Atlantis, no qual os tecidos e os calçados receberam um tratamento que remete a formas orgânicas, são, em si, uma contradição. A estetização dos calçados que lembram patas de animais, violentam o corpo das modelos obrigadas a buscar um equilíbrio difícil calçando tais sapatos.
As imagens são exuberantes, o espetáculo envolve o espectador num jogo de luzes, cores e uma música eletrônica que vai pontuando a entrada e o desfile das modelos. As roupas remetem a ninfas, seres metamorfoseados, em transformação. Conforme argumenta Zapata, a sustentabilidade do planeta é uma das preocupações de McQueen e através do desfile, questiona o devir nos limites da forma humana.
Conclusão
Diante do colapso das formas tradicionais do sagrado que está no discurso dos dois filmes, ou seja, da vivência cosmológica do ser humano, o que podemos, na contemporaneidade, considerar sagrado? Com o que o ser humano pode significar a existência frente à angústia da morte? Como transfigurar os sentimentos de medo e aniquilamento inerentes à existência? Nos dois filmes examinados emerge o conceito de espetáculo, de dar-se aos sentidos, especialmente ao olhar. O cinema foi no século XX uma das formas artísticas centrais, verdadeira máquina do imaginário. O dispositivo que iniciou como cinematógrafo ampliou-se neste novo século tornando-se, ele próprio, parte do espetáculo, como se observa no desfile da coleção Plato’s Atlantis. Ver e ser visto é parte de uma lógica predominante na economia dos significados: o espetáculo inclui os espectadores.
Sagradas seriam as emoções suscitadas pelo estímulo dos sentidos? O desfile não é a sucessão de roupas desenhadas e apresentadas como uma nova coleção de moda. O desfile é um espetáculo para os sentidos, vivenciado por aqueles que lá se encontram, no exato momento em que acontece. Deste momento epifânico resta o documento, o webfilme, já então destituído do simbolismo primeiro e original, ecoando na rede, para ser visto, mas já morto do significado simbólico, assim como as estátuas africanas expostas na metade dos anos 50, como peça de museu, para o olhar curioso dos turistas.
Referências
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MORIN, Edgar. A alma do cinema – Cap. IV de O cinema ou o homem imaginário in XAVIER, Ismail (org.) A experiência do cinema. Rio de Janeiro : Graal/Embrafilme, 1983.