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Cinema
Pier Paolo Pasolini, Intelectual e Cineasta Maldito
24/09/2018
Existem pessoas para as quais expressar-se publicamente não é uma escolha, é uma necessidade. Para Pasolini foi uma urgência. Da extraordinária geração do cinema italiano do pós-guerra, da qual faz parte o decadentismo existencial de Visconti, a poesia onírica de Fellini, o humanismo social de Ettore Scola, despontou a consciência trágica de Pier Paolo Pasolini.
Nascido em Bolonha em 1922, falecido em Roma em 02 de novembro de 1975, Pasolini foi incansável pensador da realidade. Muito além do cinema, foi pela palavra que refletiu sobre o mundo no seu tempo. Escreveu contos, romances, poesias, peças de teatro, roteiros e, principalmente, ensaios publicados em jornais. As obras completas estão reunidas em 10 volumes pela editora italiana Mondadori. Para conhecer o seu pensamento, um bom título em português é A Vida Clara Linguagens e Realidade Segundo Pasolini, de Michel Lahud (Cia das Letras, 1993) e para uma visada biográfica, Pasolini, do escritor francês René de Ceccatty (L&PM, 2015).
O eixo principal do pensamento de Pasolini gira em torno da passagem brutal da Itália, no século XX, de um mundo antigo para a sociedade de consumo. É na língua que se manifestam as transformações decorrentes da expansão industrial que modifica a vida social. Como intelectual engajado, no sentido gramsciano, publica os primeiros poemas no dialeto da região do Friuli, onde nasceu sua mãe. Tinha 20 anos e o gesto marca a adesão de Pasolini às pessoas simples que orientaria toda a sua obra.
Dirigiu 15 longas-metragens, curtas e médias, identificados pela crescente consciência da tragédia produzida pela industrialização. Aos anos iniciais em Roma, quando era professor de letras nas periferias e observava as mudanças de valores entre a gente pobre, correspondem Accattone (1961) e Mamma Roma (1962). A chamada fase mítica, expressão de um cinema de poesia, é composta por três magníficos filmes: O Evangelho Segundo São Mateus (1964) Édipo Rei (1967) e Medeia (1969), pontos altos de um anseio de ressacralização do mundo. Na perspectiva de Pasolini, o resultado da substituição das culturas originais – nais quais as pessoas viviam experiências orgânicas e integradoras – por processos uniformizantes, são seres humanos tristes e vazios.
A crítica ao consumo levou Pasolini à radicalidade e a chamada fase corsária. Contra a cultura de massa, fez filmes “inconsumíveis”, resultando deste período a obra-prima Teorema (1968), no qual uma família burguesa, ao receber em casa um jovem que chega de repente (Terence Stamp), é confrontada com o vazio existencial, a loucura e uma radical destruição. Como ensaísta, é um período de combate em que Pasolini escreve com fúria contra o que considera o pior dos fascismos, aquele que, pelo viés do consumo e dos valores burgueses, acaba com a alegria e a beleza da existência. A este período corresponde a celebração do erotismo arcaico da chamada “trilogia da vida” de Decameron (1970), Os Contos de Canterbury (1971) e As Mil e Uma Noites (1974). A inconformidade com o sucesso destes belíssimos filmes levou a abjuração deles e a radicalidade de Saló ou os 120 Dias de Sodoma (1975) em que as imagens violentas do sexo são repugnantes. Um mês antes da primeira exibição do filme, no qual denuncia o sexo como expressão de poder e humilhação, Pasolini foi assassinado na praia de Óstia.
Pasolini foi um artista múltiplo e original. Extrapolou o cinema, foi um intelectual público, um artista orgânico, um pensador desesperado que viveu com a urgência dos malditos que vislumbram a catástrofe. Revisitei sua obra e trajetória no curso Pier Paolo Pasolini Intelectual e Cineasta Maldito, promovido pela CineUm, do meu amigo Jorge Ghiorzi. Agora mesmo, em maio de 2018, a Cinemateca de Curitiba realizou o ciclo retrospectivo O Cinema Segundo Pasolini. Os filmes em cópias novas e resmaterizadas estão disponíveis para que possamos ver ou rever, na certeza de encontrar a inquietação e o desconforto de pensar, nossa única liberdade possível.