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Cinema
Sobre Joan Didion e a (im)permanência
30/12/2021
Meu pai de 85 anos e saúde invejável passou por uma sucessão de internações em 2021 decorrentes de um aneurisma no abdômen que tem nos levado a extensas jornadas hospitalares. Nestes dias, às vésperas do Natal, eu estava lendo O ano do pensamento mágico enquanto aquela cuja desnudada franqueza me impressionava – a grande jornalista e escritora Joan Didion – falecia em 23 de dezembro, aos 87 anos.
“Será que apenas sonhando ou escrevendo eu conseguia descobrir o que pensava?” Se perguntou frente à dor da morte repentina de seu marido John Gregory Dunne, em 30 de dezembro de 2003. Eram ambos escritores e trabalhavam em casa – “nosso dias eram povoados pelo som de nossas vozes”. 24 horas juntos por 40 anos: eram incapazes de imaginar a vida um sem o outro. O livro é um tributo ao ser amado e também sobre escrever, casamento, amizade, vida e morte. “Informação é controle”, reitera na confusão dos sentimentos que envolviam também sua filha de 30 anos em estado de coma no hospital. Sobre a morte de Quintana, em 2005, depois de longa enfermidade, escreveu Noites azuis, também um livro íntimo. Ler, aprender, investigar, recorrer à literatura especializada eram suas estratégias. No desamparo cita poesia, literatura e ciência.
Os necrológios sobre Joan Didion a celebram como um dos principais nomes do novo jornalismo, esse modo de escrita tão norte-americano de conjugar literatura com o empirismo jornalístico de ir a campo e descrever fatos. Seus ensaios publicados em revistas e jornais – começou na Vogue, em 1965 – estão reunidos em coletâneas. Já na primeira, Rastejando até Belém (1968), se afirma pela acuidade e capacidade de observar a realidade que a distinguem entre os grandes cronistas do século XX. Nascida na Califórnia (Sacramento, 1934) observou o cenário da contracultura enquanto ocorria e em lugar de celebrar a festejada revolução comportamental vislumbrou as contradições dos ideais de paz, amor e liberdade. “… tudo que escrevo reflete, às vezes gratuitamente, como me sinto”: para um escritor sentir nunca é tão somente fruição.
Joan era séria. Susan Sontag também. Nas minhas jornadas de hospital, impelida a pensar sobre a morte, também li Diante da dor dos outros, um poderoso ensaio histórico-filosófico sobre representações de sofrimento, guerra e violência e como – nós modernos – nos relacionamos com essas imagens. Em sua ética irredutível Sontag é definitiva: “Dizer que a realidade se transforma num espetáculo é um provincianismo assombroso. Universaliza o modo de ver habitual de uma pequena população instruída que vive na parte rica do mundo, onde as notícias precisam ser transformadas em entretenimento”.
Vivemos alentadas ilusões de estarmos no controle, mas somos apenas seres jogados no mundo. (Não sei das nuanças da filosofia de Heidegger, mas a virada metafísica que faz ao deslocar o argumento da essência para a existência do ser conecta com nossa angústia em relação à finitude). Somos duração. A escrita faz a mágica da permanência: agarra aquilo que flui incessante na mente e dá consistência em ideias. “Sem a paciência do conceito ninguém entende nada”, dizia Hegel.”O sofrimento é passivo. O sofrimento acontece. O luto, o ato de lidar com a dor exige atenção”, a escritora constata.
A trajetória profissional de Joan Didion – autora de romances, roteiros de cinema e livros de não ficção – e a experiência em relação à morte de seus entes queridos estão no documentário The center will not hold, na Netflix, dirigido por seu sobrinho Griffin Dunne. Ela conta que ganhou o primeiro caderno da mãe, com a sugestão de que escrevesse o que estivesse em sua mente. Apesar de ainda não saber direito como fazer isso, Didion lembra que, ao pôr as ideias no papel, só queria que aquilo continuasse.
O ano do pensamento mágico. Harper Collins, RJ, 2021. Traduçao de Marina Vargas.