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Túlio Piva e as lembranças do Pandeiro de Prata
11/01/2020
Fiquei emocionada com o documentário Tulio Piva Pandeiro de Prata, que relata a vida e obra do músico e compositor gaúcho que marcou o samba e a noite porto-alegrenses entre os anos 60 e 80. Não sou da boemia nem dos círculos musicais da cidade, mas cresci em Porto Alegre ouvindo rádios em que as “play lists” repetiam Pandeiro de Prata, Gente da Noite e Tem que ter Mulata. A beleza dessas canções, na voz inconfundível de Túlio Piva, e o riquíssimo material de arquivo trazido pelo filme me fizeram voltar no tempo e sentir saudades de mim e de uma Porto Alegre que já foi.
O filme é um esforço pessoal de produção de Rodrigo Piva com a parceria do diretor catarinense Marco Martins. Neto de Túlio, Rodrigo é músico, mora há 30 anos em Florianópolis para onde a família foi se mudando aos poucos depois do falecimento do artista, em 1993. A trajetória de Túlio Simas Piva, nascido em Santiago do Boqueirão, em 1915, que se projetou como violonista original e compositor na melhor tradição da música popular brasileira, tem uma importância tão evidente que só nossa ignorância cultural impede que seja percebida.
Sem conseguir financiamento, Rodrigo e os cineastas Marco e Loli Menezes usaram recursos próprios e arrecadaram por crowdfunding para terminar o filme a tempo do centenário de nascimento de Túlio, em 04 de dezembro de 2015. Uma sessão especial no Cine Santander marcou a data. Mas o lançamento comercial só acontece agora, cinco anos depois, na Sala Norberto Lubisco da Cinemateca Paulo Amorim, onde o filme está em cartaz. A sessão especial de estreia, na quinta-feira, 9 de janeiro, reuniu familiares, amigos do compositor e os realizadores. É um filme que merece ser visto.
A precariedade da falta de dinheiro não diminui as emoções ou o valor de Túlio Piva Pandeiro de Prata, que só foi feito porque Túlio era um boêmio organizado. Deixou catalogadas todas as canções que compôs (centenas ainda inéditas), gravações, recortes de jornal, fotos e entrevistas para televisão. Imagens complementares foram obtidas com o apoio da RBS. O trabalho de montagem de Marco Martins apresenta o perfil de uma figura singular, que chegou à capital gaúcha em 1955, trazendo o negócio de farmácia da família de origem italiana. A Drogaria Piva, na Rua dos Andradas perto da Dr. Flores, logo passaria a ser um dos pontos de encontro de músicos da cidade.
O documentário tem a qualidade de trazer depoimentos que dimensionam o artista e o ser humano. O músico Giovanni Berti, que se criou no ambiente da família Piva, fala do dedilhar ritmado do exímio violonista enquanto Claudinho Pereira lembra da contrariedade do sambista com a música discoteque dos anos 80. Juarez Fonseca – que sabe tudo da história musical porto-alegrense – coloca em perspectiva os eventos culturais nos quais se projetou o samba-batucada que levou Túlio a ser o grande vitorioso do II Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular, com Pandeiro de Prata, em 1968.
Com vários discos gravados e amplamente reconhecido, o farmacêutico deu lugar ao músico em tempo integral, e junto com Lúcio do Cavaquinho, Túlio comandaria o lendário Gente da Noite, bar-restaurante com música ao vivo que se tornou reduto boêmio na Cidade Baixa. Túlio Piva faleceu em 1993, às vésperas do carnaval em que foi tema da escola Academia de Samba Praiana com o enredo Lua e Sol, Cenário Inspirador de um Poeta: Túlio Piva. As lágrimas de Paulo Sant’Ana anunciando na televisão a morte do sambista testemunham a dor de sua perda.
Túlio Piva Pandeiro de Prata é um documentário que traz a memória íntima da família, à qual esse “falso boêmio” era dedicado. Num dos depoimentos, o genro Jayme diz que ele não sabia beber, cometia heresias misturando uísque com guaraná e vinho tinto com refrigerante. Quem primeiro ouvia as composições era Heloísa, companheira de toda a vida com a qual se casou em 1940. Em muitos sentidos a data foi uma virada: Túlio deixou de lado o tango e as milongas da região – é bom lembrar que Santiago é próxima da Argentina e do Uruguai – para se dedicar ao samba e começar a compor.
Os realizadores queriam ir ao Rio de Janeiro entrevistar os Demônios da Garoa e Elza Soares, que gravaram canções de Túlio, mas não foi possível. Mesmo modesto o filme cumpre o papel de manter vivos acontecimentos importantes da nossa vida cultural. Uma das imagens mostra o artista em sua última apresentação, o espetáculo Túlio Piva 75 anos, direção de Luciano Alabarse, com Arthur de Faria e seu grupo de chorinho Barato pra Cachorro, em 1991. Importante observar que também estavam no palco os netos Rodrigo e Rogério, de sua única filha Vera, que seguiram na música deixando de lado em definitivo os negócios de farmácia da família.
Dos caminhos que um artista escolhe para si vai se fazendo também a história cultural de uma sociedade. Manter presente essa memória é uma afirmação de identidade. Túlio Piva é reconhecido por Porto Alegre, dá nome ao Teatro de Câmara localizado na Rua da República, que deverá reabrir depois de seis anos fechado, dentro do novo modelo de gestão dos equipamentos culturais que a Prefeitura Municipal está implementando. A reforma do teatro fechado em 2014 faz parte do edital vencido pela Opinião Produtora para administrar o auditório Araújo Vianna.
Diante dos aspectos práticos da vida, a arte parece menos importante, como se pudesse ser deixada de lado sem maior prejuízo. Erro de percepção. A música, o cinema, a literatura, a pintura, o teatro e outras artes trazem uma dimensão poética que completa o sentido de nossa banal existência cotidiana. O filme Túlio Piva – pandeiro de prata nos relembra desse sentido tão essencial da arte.
TÚLIO PIVA – PANDEIRO DE PRATA (Brasil, 2018, 55min). Documentário de Marco Martins e Loli Menezes. Guarujá Produções e Vinil Filmes. Livre.
Local: Cinemateca Paulo Amorim – Sala Norberto Lubisco (Andradas, 736)
Sessões: 19h15min
Período: de 9 a 15 de janeiro de 2020