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Cinema
Um Mestre da Crítica
27/01/2019
Um dos acontecimentos importantes no campo da crítica cinematográfica no ano de 2012 foi a publicação do livro Paulo Emílio Salles Gomes: O Homem que Amava o Cinema e Nós Que o Amávamos Tanto, organizado pela jornalista e crítica de cinema Maria do Rosário Caetano. Editado pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal, foi um dos marcos comemorativos do 45º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que também prestou homenagem a um de seus idealizadores com o Seminário Paulo Emílio e a Crítica Cinematográfica, proposto e organizado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema – Abraccine. As discussões transcorridas entre os dias 20 e 22 de setembro, no Kubistchek Plaza Hotel, permitiram um retorno ao pensamento deste que foi um dos maiores historiadores e teóricos do cinema brasileiro. Dos três dias de palestras e debates emerge a atualidade do pensamento desta figura fundamental para a prática e a teoria do cinema. Tal constatação deve-se ao fato da produção textual de Paulo Emílio Salles Gomes (1916 – 1977) ainda desafiar seus leitores e, de outro, à sua postura como intelectual participante da cena da qual fez parte. Pensar sobre e com as ideias de Paulo Emílio permite-nos refletir em torno de questões da crítica cinematográfica nos dias correntes.
A capa do livro, na qual Paulo Emílio aparece segurando uma foice e um martelo, remete ao início da trajetória do paulistano que aliou a militância política na Juventude Comunista com os estudos na recém-criada Faculdade de Filosofia. Do presídio onde foi parar em 1937, em decorrência das atividades políticas durante a ditadura Vargas, fugiu para a França, onde os anseios intelectuais encontraram ambiente propício para expressar-se. Quando retornou ao Brasil, no final de 1939, propôs um clube de cinema nos moldes do Circle du Cinéma, cujas sessões promovidas por Henri Langlois e Georges Franju aguçaram o interesse ainda incipiente pelo tema que se transformaria no eixo principal de sua atuação político-cultural. Paulo Emílio foi um intelectual ativo que pensou sobre o país, valendo-se do cinema. Deixou uma contribuição para a cultura cinematográfica que identificamos em três frentes principais: da preservação, da crítica jornalística e da teoria. É bastante tardia a preocupação no Brasil com a preservação de filmes, decorrente da desvalorização cultural do que aqui se fazia. Somente em 1948 acontecem os primeiros gestos na direção de uma consciência preservacionista com a fundação no Rio de Janeiro do Museu de Arte Moderna e a criação da Filmoteca do MAM, que passa a ser representada junto à Féderation Internationale des Archives du Film por Paulo Emílio, que retornara à França para estudos de estética no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDEHEC). De volta ao Brasil em 1954, assumiu o cargo de conservador na instituição e passou a prospectar filmes antigos.
O convite para escrever na seção de cinema do jornal O Estado de S. Paulo em 1956 dava continuidade à função iniciada na emblemática revista Clima, fundada em 1941 com o grupo de intelectuais da Faculdade de Filosofia, entre os quais Décio de Almeida Prado e Antonio Candido. Nesses textos escreveu a partir da cultura adquirida no período europeu, valorizando cineastas como Jean Renoir, Orson Welles ou Serguei Eisenstein, com um olhar atento para a cena cultural cinematográfica nacional. São textos que merecem serem visitados. Estão reunidos em antologia antiga (1982) da Editora Paz e Terra nos volumes Crítica de Cinema no Suplemento Literário 1 e 2 e deverão ganhar nova publicação pela Cosac Naify em que serão disponibilizados não mais por cronologia de data, mas por temas, tarefa que está sendo coordenada por Carlos Augusto Calil.
A veia teórica começa a se desenhar com o convite de Darcy Ribeiro para organizar um curso universitário de cinema na Universidade de Brasília. Aconteceu. Embora tenha sido desmantelado pelo golpe de 64, levou Paulo Emílio a uma nova frente de atuação e uma consciência ainda mais aguda sobre o cinema brasileiro. Como professor daquela que seria a Escola de Comunicações e Artes da USP, a partir de 1968, passa a lecionar as disciplinas de Cinema Brasileiro e História do Cinema. É desse período um de seus textos mais contundentes, o seminal Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento, publicado em 1972.
As ideias de Paulo Emílio nos instigam a refletir sobre a crítica cinematográfica e seu exemplo indica o quanto a atividade de crítica é desafiadora e está distante do famigerado juízo de valor dimensionado por símbolos como estrelinhas ou bonequinhos entediados. “Orientadores de consumo” proliferam nos dias atuais de crise do jornalismo cultural, cada vez menos crítico e mais subserviente aos modismos e à indústria do entretenimento. Ser crítico é ser capaz de afastar-se para ver de longe, aqui no caso, o filme. Esse gesto implica em perceber o contexto da obra, pois um conhecimento preciso da estética e do conteúdo só é possível à luz de aspectos culturais e econômicos. Em Paulo Emílio, lembrou o crítico Luiz Zanin Oricchio, havia o “real da obra, a paixão pelo concreto e a iluminação que o contexto agrega para a sua compreensão”. Como avaliar um filme dissociando-o das circunstâncias de sua origem e existência?
Nunca antes na história tantas pessoas puderam manifestar opiniões num fórum público tão democrático e livre como esse proporcionado pela internet. Predominam textos impressionistas, descartáveis pela superficialidade. Nesse ambiente de excesso, uma opinião balizada cresce em valor. Afinal, compreender é ato humano espontâneo, compartilhado por todos quantos dominam os códigos de linguagem da cultura da qual fazem parte. É fácil compreender um filme, ainda que os sentidos implícitos escapem ao espectador. Interpretar já vai mais além, é resultado de um ato de reflexão.
Ismail Xavier lembrou que Paulo Emílio era parcimonioso em juízos estéticos, econômico em elogios. Como crítico, o que mais fez foi “delinear processos, estabelecendo as coordenadas para compreender os contextos”. Um dos benefícios da crítica é iluminar as razões do gosto. Porque gosto se discute sim, e nunca é inocente. É sempre resultado de um conjunto que envolve o conhecimento, os valores, a história daquele que emite opinião. Há um lugar de fala que se faz presente no discurso. A crítica corajosa não se furta a uma autocrítica.
A crítica enquanto ato político
Fazer crítica é um ato político. É incontornável para o crítico posicionar-se sobre os filmes da cultura da qual faz parte. E, mais ainda, é preciso enfrentar essa proximidade. Em relação ao cinema nacional, não existe distância possível. Com brilhantismo, François Truffaut, que era chamado de “coveiro do cinema francês” em sua época nos Cahiers du Cinéma, reconheceu a impossibilidade de uma isenção emocional daquilo que nos diz respeito diretamente. É neste ponto que Paulo Emílio desponta com brilho no campo do pensamento cinematográfico. Como polemista que era, produziu com fina ironia ideias poderosas, ainda hoje apropriadas de modo equivocado. A mais repetida delas – “O pior filme brasileiro é melhor (ou mais importante) que o melhor filme estrangeiro” – nunca foi assim enunciada pelo crítico, que defendia um olhar sobre toda a produção, principalmente a ruim. Ismail Xavier recolheu uma passagem de Paulo Emílio em defesa dessa estratégia: “O filme ruim, pelo simples fato de emanar de nossa sociedade, tem a ver com todos nós, e adquire muitas vezes uma função reveladora. Abordar o cinema brasileiro de má qualidade implica numa luta tenaz contra o tédio, mas é raro que o esforço não seja compensado. O subdesenvolvimento é fastidioso, mas sua consciência é criativa”. Trata-se de uma postura investigativa, desafiadora, única capaz de sustentar o gesto crítico. Se não é para elucidar, produzir choque de entendimento, qual o motivo da crítica?
Podemos considerar o crítico um sujeito exibido, vaidoso de manifestar sua opinião, mas também podemos considerá-lo um pedagogo, interessado em compartilhar o conhecimento. Nessa dimensão política o exemplo de Paulo Emílio nos remete à reflexão sobre a atuação do crítico como agente cultural e aqui a lembrança de Paulo Fontoura Gastal (1922-1996) é viva e afetiva. Ambos atuaram no seu tempo, na geografia da qual faziam parte, envolvidos com atividades de cineclubismo, organização de mostras e festivais de cinema brasileiro e estrangeiro. São lugares que a crítica deve ocupar disseminando um espírito questionador e chamando atenção para a invenção estética e de conteúdo.
O valor de um texto de crítica não está no tamanho. A facilidade da internet seduz com um espaço ilimitado para a redação de textos, o que conduz ao equívoco da produção de críticas enfadonhas, perdidas em minúcias estruturais. É um vício cada vez mais frequente, decorrente da formação acadêmica de gerações embriagadas com conceitos e teorias. Não se trata aqui de desqualificar essa formação, já que permite o contato com um conhecimento sistematizado e organizado. Trata-se de reafirmar a resenha crítica como diálogo sem perder de vista o que é importante. Mas, afinal, o que é importante? Aquilo mesmo que faz a diferença nos filmes: a vida. Um bom texto crítico toma o filme como argumento para uma reflexão sobre o ser humano e suas circunstâncias. Na boa tradição do mestre André Bazin, o filme é uma janela para o mundo sobre a qual o espectador se projeta e empreende uma viagem de autoconhecimento. Assim como um filme pode iluminar a vida, do texto que dele tratar não se pode esperar nada menos do que isso.
Publicado na revista Teorema Crítica de Cinema – nº 21 – Dez. 2012