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Verdades da família criada por Koreeda
06/02/2019
Sentimentos não têm lógica. É fácil viver experiências falsas das quais extraímos verdades que mudam nossa vida. Platão, desconfiado, se insurgiu contra o engano das emoções advogando a busca da verdade pelo criterioso exame racional. Não é assim tão simples. O diretor japonês Hirokazu Koreeda trata de verdades e mentiras, legalidade e crime e, afinal, o que é certo e o que é errado, em Assunto de Família (Manbiki kazoku) vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2018 e indicado ao Oscar de filme estrangeiro.
A primeira cena mostra uma contravenção. Um menino e um homem roubam comida num mercadinho. Logo adiante, indo para casa, cruzam com uma garotinha sozinha numa varanda. A noite é fria, decidem levá-la. Em casa, a mulher Nobuyo (Sakura Andô) reluta, mais uma boca para comer. Só aceita ficar com a graciosa Yuri (Miyu Sasaki) ao perceber que sofre maltratos. A família é calorosa, eles se reúnem em torno da vovó Hatsue (Kirin Kiki), comem juntos, cuidam uns dos outros. Apesar da pobreza, estão felizes. Mas existe um segredo. Toda família tem os seus. Freud criou a expressão “romance familiar” para o processo em que a criança rompe os laços de dependência afetiva com os pais a fim de amadurecer como indivíduo autônomo. Nessa passagem de desligamento imagina não ser filho verdadeiro. Cria a fantasia de ter sido adotado e, com isso, passa pelo momento difícil.
No Japão não tem psicanálise e a família nuclear, como conhecemos no Ocidente, é recente, foi estabelecida por um Código Civil escrito depois da Segunda Guerra. No sistema tradicional a família era baseada na casa, a ie, e sua continuidade era mais importante do que as relações de parentesco ou a vontade individual. A organização social se baseava no papel das casas e obedecia a uma rigorosa hierarquia a partir da casa principal, a do imperador. A mudança legal do regime familiar, junto com a modernidade econômica, foi um processo muito rápido e gerou problemas sociais. No Japão contemporâneo existem mais pessoas que moram sozinhas do que em família. O cineasta Yasujiro Ozu já tratava dessas transformações mal absorvidas em seus dramas familiares, Era uma vez em Tóquio (Tokyo monogatari, 1953) é uma de suas obras-primas. Hirokazu Koreeda segue a tradição de Ozu, e constrói Assunto de Família como uma tese em defesa da vida familiar.
Existem coisas duvidosas naquela família arranjada ao acaso. O homem Osamu (Lily Franky) não é um modelo moral, a esposa (Sakura Andô) é conivente com os pequenos roubos que ele pratica e a vovó usa estratagemas suspeitos para melhorar seus rendimentos de pensionista. A família é de fachada, as crianças não são filhos do casal, a avó era antes uma velha sozinha e nem a suposta cunhada (Mayu Matsuoka) tem com eles algum vínculo de sangue. A virada nesse mundo de faz de conta é dada pelo menino Shota (Jyo Kairi) que impõe a todos – senão a consciência – alguma responsabilidade pelos seus atos. Ele está crescendo e começa a fazer as próprias escolhas.
O desenvolvimento da história, escrita por Koreeda, toma então outro rumo e o Estado entra em cena distinguindo o legal da ilegalidade. Para o cineasta, aquilo que subjaz como importante na relação entre aquelas pessoas reunidas pelas agruras da pobreza ou pela necessidade do afeto não é contemplado pela lei. Um dos momentos mais bonitos do filme é um dia em que a família vai à praia. A imagem deles vistos de longe é idílica, há uma ternura nas brincadeiras que fazem entre sim, como se divertem uns com os outros, não importa que não sejam parentes de verdade. Mas alguma coisa falta em Assunto de família, como bem apontou o crítico Inácio Araújo. O desfecho dos acontecimentos demonstra que é melhor viver juntos do que sozinhos e como o amor é importante, uma evidência que o filme não consegue sustentar dramaticamente. O que pretende o filme de Hirokazu Koreeda? Dizer, para o Japão atual, que é melhor uma família de fantasia do que nenhuma?