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XVI Festival Internacional de Cinema da Fronteira
28/05/2025

A diretora argentina Lucrecia Martel, homenageada do Festival Internacional de Cinema da Fronteira em 2024, saiu de Bagé afirmando: “el mejor festival de mi vida”. Aparte a gentileza diplomática da cineasta premiada em Berlim, que presidiu o Festival de Veneza e concorreu em Cannes, havia um entusiasmo espontâneo e carinhoso, expressão do sentimento de compartilhar uma realidade latino-americana comum aos participantes deste pequeno (porém vigoroso) evento. Na 16ª edição, realizada na segunda quinzena de abril de 2025, nas cidades de Bagé, Santana do Livramento e Rivera (no Uruguai), o afeto enquanto energia vital de pertencimento e criatividade foi assumido no eixo temático que também contemplou patrimônio e linguagem.
São ideias que já estavam lá, no início, em 2009, quando uma singela mostra de curtas no Centro Histórico Vila de Santa Thereza (CHST) se tornou a centelha do festival: havia o olhar para o território enquanto espaço físico e simbólico de existência e, portanto, de identidade cultural. Esse é um tema que Zeca Brito, mentor e dínamo do festival, costura e renova a cada edição, mobilizando as condições possíveis para avançar sempre mais um pouco, engajando uma aguerrida equipe. A história do que foi realizado até agora está na excelente pesquisa feita por José Eduardo Centena de Camargo e Marizele Ferreira Garcia, no site do festival. Em Memória do Festival da Fronteira: pesquisa e salvaguarda do Festival Internacional de Cinema da Fronteira estão compiladas informações que atestam, além da significativa trajetória percorrida, a ênfase nos valores artísticos regionais. Os artistas locais sempre têm espaço na agenda do festival, desde o renomado Glauco Rodrigues, criador da figura emblemática de São Sebastião incorporada como símbolo do festival em 2011, até a singela prendinha Sarah Vitória, garota desenvolta que recitou poesias na abertura da edição deste ano,
O localismo (quando esta ainda não era uma categoria de oposição à globalização) está na gênese dos primeiros festivais da história do cinema. O pioneiro Festival de Veneza, realizado em agosto de 1932, na praia do Lido, nasceu no contexto da ideologia nacionalista de Benito Mussolini. E foi porque o ditador interferia na premiação em prol dos filmes italianos e alemães que os franceses criaram seu próprio festival, em 1939, na cidade paradisíaca de Cannes, junto ao mar Mediterrâneo. Não que essas cidades maravilhosas precisassem de divulgação, mas sem dúvida a associação com o cinema beneficiou o turismo.
Mostra Internazionale d’Arte Cinematografica della Biennale di Venezia surgiu – e até hoje acontece – dentro da Bienal, criada em 1895, em diálogo com arquitetura, dança, música e teatro. É esse mesmo espírito de integração que permeia o Festival Internacional de Cinema da Fronteira, que intercala as sessões dos filmes, as palestras, oficinas formativas, homenagens e premiações com apresentações de artistas bageenses. Existem no Brasil uns 200 festivais, nem todos têm o direcionamento para a cultura local: nas capitais a atenção está toda nos filmes; em Bagé, porém, tudo é arte, cultura e história.
Região habitada por tribos indígenas charruas, colonizada por espanhóis e portugueses e palco de guerras territoriais, Bagé viveu o ciclo de riqueza das charqueadas, principal atividade econômica do Rio Grande do Sul no século 19. O casario antigo e os belíssimos palacetes que encantam ao longo das avenidas largas e arborizadas com palmeiras imperiais são da época em que Bagé se distinguia pela inovação. O sítio histórico de Vila de Santa Thereza – integrado à programação do festival – era abastecido por uma pequena usina hidrelétrica quando ainda não havia luz elétrica na cidade. É incrível a história desta charqueada, fundada pelo português Antônio de Ribeiro Magalhães, em 1897. Chegou a ter mais de 800 empregados que trabalhavam e viviam com suas famílias numa vila operária que foi modelo para a urbanização na região da campanha: a vila tinha teatro que chegou a funcionar como cinema. Este tesouro bageense é parte do festival.
Em 2025, dois percursos culturais direcionaram a atenção ao patrimônio histórico e à geografia: um passeio pelas ruas de Bagé convidou os participantes a olharem os casarios e palacetes da arquitetura singular e, do paradouro Cerros de Gaya, na vizinha Dom Pedrito, vislumbrar a amplidão do horizonte pampeano num entardecer poético.
Pessoas também são patrimônio cultural. Do Oscar ao Festival de Cannes, é de praxe homenagear realizadores cuja trajetória contribui para o cinema, seja no aspecto artístico, técnico ou de produção. Os festivais são palcos de lançamento e reconhecimento, reforçam os sistemas em torno do filme, que é objeto econômico e artístico, mas também político e de expressão do imaginário, por isso, escolher essas pessoas é estratégico. Giba Assis Brasil e Ana Luiza Azevedo, homenageados em 2025, fazem parte do patrimônio afetivo que nos entrelaça enquanto cinematografia fronteiriça, periférica e do sul global. O valor deste casal, que há mais de 40 anos contribui para o nosso cinema, é imenso. São da geração de cineastas gaúchos que nos anos 1980 passam a atuar coletivamente e criam as condições para a produção regional. Em 1987 ajudaram a fundar a Casa de Cinema de Porto Alegre sob o princípio do cooperativismo. O regime jurídico da produtora mudou, mas a ideia de cooperação tem sido guia para Ana Luiza como roteirista e diretora e para Giba enquanto montador e, também, como professor do Curso de Realização Audiovisual da Unisinos, que ajudou a criar em 2003.
Como participante de algumas edições – a primeira em 2013 – percebo a evolução do Festival que preserva, todavia, uma ancoragem forte na comunidade com a oferta de oficinas para formação profissional ou alfabetização do olhar, realizadas em colaboração com instituições de ensino: Unipampa, Urcamp ou IFSul. O resultado deste investimento é uma produção local, ainda que incipiente. Não é pouco! A região localizada no extremo sul do Brasil, a 60 km da fronteira com Uruguai, conserva os valores tradicionais próprios de uma cultura baseada na pecuária e na agricultura. A fronteira – linha cujo caráter imaginário Zeca Brito enfatiza – se dissolve nos propósitos do festival que começou em Bagé e se espraia pelo espaço físico e simbólico do Pampa.
Ao contrário de Cannes, em que Lucrecia Martel ficava confinada num quarto de hotel recebendo jornalistas que lhe perguntavam sobre a situação política da Espanha (ela não é espanhola), no Festival Internacional da Fronteira a cineasta que nasceu e vive na cidade argentina de Salta, andou pelas ruas, conversou, riu e conviveu com as pessoas. “Quer fazer cinema ? busca a tua turma!”, é o bordão de Giba. Nosso tapete vermelho não é midiático como o de Cannes. Aqui, no lugar do disputado desfile – símbolo de poder e influência na indústria – a experiência é de convívio e troca entre pessoas irmanadas na experiência de pertencer ao território e à cultura latino-americana.











Filmes premiados na edição de 2025
Três dos sete longas da Mostra Internacional, selecionados pelos curadores Roger Lerina e Jonas Chadarevian, eram documentários de observação com temas engajados que foram reconhecidos na premiação. A Queda do céu, produção paulista (SP), dirigida por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha sobre a cosmologia Yanomami venceu melhor filme, montagem de Renato Vallone e menção honrosa da crítica para o trabalho de som de Marcos Lopes, Guile Martins e Toco Cerqueira. Conduzida pelo líder yanomami Davi Kopenawa a equipe penetra no interior da comunidade Watoriki e acompanha o ritual xamânico Reahu com efeito imersivo sobre o espectador.
Melhor filme do júri da crítica, Tijolo por tijolo (PE) é o resultado de dois anos de filmagens do cotidiano de uma família da periferia do Recife que se mantém com postagens nas redes sociais. Os cineastas Victória Álvares e Quentin Delaroche mostram como os vínculos afetivos servem de sustentação à dureza de uma vida precária que exige diariamente forças renovadas de enfrentamento. O trabalho de Cris Martins diante da câmera recebeu o prêmio de melhor atuação e a simpática desenvoltura do menino Caique de Souza Ventura levou a representante do Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias, Gisela Perez, a instituir um prêmio especial para exibir a produção pernambucana naquele que é o festival mais antigo da América Latina, criado em 1960, na Colômbia.
Por tu bien, escolhido melhor filme pelo júri popular, é uma produção do núcleo ativo de audiovisual da região argentina de Misiones. É o primeiro longa de Axel Monsú, experiente diretor de arte que assina o roteiro com Sergio Acosta. A história se passa numa comunidade isolada e pobre, na região fronteiriça entre Argentina e Brasil, onde a violência do patriarcado é escamoteada pela religiosidade. Naquele ambiente em que as mulheres são obrigadas a servir e obedecer os homens, a jovem Zulma (Sabrina Melgarejo) precisa tomar decisões próprias para romper o círculo vicioso do abuso sexual. Em tom naturalista, esta fábula sobre o amadurecimento é também uma denúncia sobre a violência contra as mulheres no ambiente da família.
Premiação completa:
- Melhor Filme: “A Queda do Céu” (Brasil/SP), de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
- Melhor Direção: “O Maior Espetáculo da Pampa” (Brasil/RS) – Tyrell Spencer
- Melhor Fotografia: “El Turbio” (Argentina) – Bruno D. Ruiz
- Melhor Montagem: “A Queda do Céu” (Brasil/SP) – Renato Vallone
- Melhor Roteiro: “Bicho Monstro” (Brasil/RS) – Germano de Oliveira, Igor Verde e Marcela Ilha Bordin
- Melhor Atuação: Cris Martins, por “Tijolo por tijolo” (Brasil/PE)
- Melhor Direção de Arte: “Por tu bien” (Argentina) – Eduardo García
- Menção Honrosa: “Brasiliana: o musical negro que apresentou o Brasil ao mundo” (Brasil/RJ), de Joel Zito Araújo
- Prêmio especial FICCI (Festival Internacional de Cine de Cartagena) : “Tijolo por tijolo” – Caique de Souza Ventura (ator)
- Melhor Filme – Prêmio da Crítica: “Tijolo por tijolo” (Brasil/PE), de Victória Álvares e Quentin Delaroche
- Menção Honrosa – Prêmio da Crítica: “A Queda do Céu” (Brasil/SP) – Marcos Lopes (som direto), Guile Martins (desenho de som) e Toco Cerqueira (mixagem de som)
- Melhor Filme – Júri Popular: “Por tu bien” (Argentina), de Axel Monsú
Mostra Internacional de Curtas:
- Melhor Filme: “Você” (Brasil/RJ), de Elisa Bessa
- Melhor Direção: “Lolo” (México) – Ana Gutiérrez Salgado
- Melhor Atuação: “A Um Gole da Eternidade” (Brasil/RS) – Álvaro RosaCosta
- Menção Honrosa: “Emerenciana” (Brasil/PR), de Larissa Nepomuceno
- Prêmio Edt.: Associação de Profissionais de Edição Audiovisual: “Você” – Luisa Dowsley (montagem)
- Melhor Filme – Júri Popular: “A Um Gole da Eternidade” (Brasil/RS), de Paulo Ricardo de Moraes e Camila de Moraes
IV Mercado Sur Frontera WIP LAB:
- Prêmio Punctum Sales (WIP): “ Londres/Nós a Sós”, de Victor di Marco, Marcio Picoli e Laura Moglia (Bagé/Porto Alegre/RS)
- Prêmio Edt. (WIP): “Navio do Sertão”, de Patrícia Pinheiro e Leonardo Pinheiro (João Pessoa/PB)
- Prêmio Destaque – Tutores (Desenvolvimento): “Bernal”, de Martín Emiliano Díaz (Buenos Aires/Argentina) e “Cortejo dos Mortos”, de Dario Aldana e Sabrina Zimmermann (Chapecó/SC)
- Prêmio FRAPA (Desenvolvimento): “Enquanto Eu Me Lembro”, de Victor di Marco, Marcio Picoli e Laura Moglia (Bagé/Porto Alegre/RS)